A história da vila que guarda uma mina dentro

Há 45 anos, as minas de São Pedro da Cova encerraram com um rasto cor de carvão encoberto pelo Estado Novo. Mas na terra mineira, outrora motor do Norte, uma estranha força fez nascer gente de luta. Lá se ergueu um dos mais agitados e impressionantes processos revolucionários no pós-25 de Abril.

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Enquanto descia às profundezas da terra, gasómetro na cabeça e saco de farnel na mão, os 16 anos de vida de Manuel Reis não puderam amparar-lhe a tremeliqueira das pernas. De repente, o rosto cândido e pálido enegreceu-se até à cor do carvão. Até à cor do medo. Lá no fundo, onde a luz não chega, passaram-lhe para a mão uma pá e pronunciaram meia dúzia de palavras. E ele começou a acartar carvão. Foi a primeira vez de um vaivém de duas décadas nas profundezas das minas de São Pedro da Cova. Manuel regressa agora ao complexo mineiro, 45 anos depois do dia que ninguém apaga da memória: 25 de Março de 1970, a data de encerramento das minas. As pernas já não tremem, mas os olhos humedecem quando recorda a “vida de escravidão”. Durante os quase dois séculos em que funcionaram, as minas de carvão foram o principal sustento de famílias inteiras nesta freguesia de Gondomar. Mas foram também sinónimo de miséria e de fome, de doença e de morte. E mudaram para sempre São Pedro da Cova.

Nesta terra mineira a 20 quilómetros do Porto, nunca quiseram enterrar as dores de outros tempos. A exploração a que milhares de trabalhadores foram sujeitos desde 1795, quando o carvão de pedra (antracite) foi descoberto na freguesia, escreve-se a letras garrafais. Recordar para não esquecer. Para Serafim Gesta, investigador local que adoptou o pseudónimo de Mazola e é autor de vários livros sobre São Pedro da Cova, as minas não são apenas um objecto de estudo. Estão-lhe gravadas no ADN há gerações, desde os “pioneiros do carvão”. “Tenho das minas as memórias mais tristes que pode haver. Memórias de morte. Estou a ver o meu avô morrer, com uma medalha ao peito, mas pobre, cansado, miserável, tuberculoso. O meu pai tísico, depois de muitos anos de mina. E a minha mãe a perder a vida à minha frente, a sujar os lençóis de sangue. Silicose: 100% de pó.”

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Esta vida feita no subsolo dificilmente pode ser descodificada por quem não a testemunhou. Palavras de Manuel Reis, 89 anos de idade e quase 20 de mina: “Mesmo que houvesse um filme, esta mocidade não acreditava. Era realmente horrível.” Manuel Teixeira Bento acena em sinal de concordância. Mostra nas mãos cicatrizes feitas pelo carvão que por algumas vezes o atingiu, mas não se deixa abalar à chegada ao complexo onde trabalhou dos 14 aos 24 anos. Volta e meia vai até lá, sozinho. “Parece que foi noutra vida.” A avó criou-o desde que tinha um mês. Vivia numa casa de madeira “com dois quartinhos e uma cozinha” no bairro mineiro. Manuel trabalhava numa fábrica de tacos na Corujeira, no Porto. Um dia, a empresa que explorava as minas bateu à porta da avó e fez-lhe um ultimato. “Disseram-lhe que ou eu ia para as minas ou nos tiravam a casa. Fui obrigado a ir.”

O monopólio da Companhia das Minas, empresa que explorou o complexo de São Pedro da Cova a partir de 1921 e até ao encerramento definitivo, era estrangulador. Além de ser uma das poucas empregadoras da região, a empresa era proprietária das casas onde boa parte dos trabalhadores viviam e, para terem direito à habitação, todo o agregado familiar era obrigado a trabalhar na mina a partir de tenra idade. Foi assim que “quatro ou cinco gerações inteiras” foram condenadas ao trabalho no complexo mineiro, aponta o presidente da junta de freguesia local, Daniel Vieira, que acrescenta mais ramificações desta dependência: a cantina onde os trabalhadores iam buscar caldo e broa, a água e a luz da igreja paroquial, o cinema, a escola, o campo de futebol utilizado pela equipa local, a associação desportiva com uma biblioteca e a banda de música estavam também sob a alçada da Companhia das Minas.

Do pátio da sua casa, Maria de Almeida aponta para os terrenos quase baldios a poucos metros de distância como se ainda vislumbrasse o rebuliço e os pés descalços e ouvisse o som constante da mina a laborar. Tiritando com a recordação, pega no seu “cadastro” (a sua ficha de trabalhador), prova de um tempo de “escravatura”: “Passámos ali uns bocadinhos amargados, passámos. Mas não havia coisa melhor. Até ir para a mina, não achei melhor.” Até ir para a mina, aos 21 anos, Maria corria para o Porto todos os dias porque trabalhava numa fábrica de farinha de pau, em Campanhã. “Eram duas horas para lá e duas para cá, a pé e sempre a correr para chegar a horas. Ganhava dez escudos. Ora, eu assim antes preferia a mina. Era ruinzinho, mas sempre era perto. Tinha de se fazer pela vida.”

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Maria de Almeida foi trabalhar para a mina com 21 anos

Analfabetismo e baixos salários

Até finais da II Guerra Mundial, as minas de São Pedro da Cova, que chegaram a empregar 1800 pessoas, eram as mais importantes do país, às quais se juntavam as do Pejão, em Castelo de Paiva, as do Couto Mineiro do Lena, em Porto de Mós, e as do Cabo Mondego, na Figueira da Foz. Esta freguesia de Gondomar foi um influente centro industrial de onde, na década de 30 do século XX, se extraía 70% da produção nacional de carvão. O emprego chegava não só para “a maioria da população” da freguesia — uma “força de trabalho não qualificada, com elevadas taxas de analfabetismo e, portanto, propensa a salários baixos”, aponta o historiador Jaime Guedes, autor da tese de mestrado Minas e Mineiros em São Pedro da Cova —, mas também para os “malteses”, homens e mulheres oriundos de outros locais do país que vinham encontrar na terra mineira a sua oportunidade.

Esses, aponta Serafim Gesta Mazola, “chegavam muitas vezes sem saber ler nem escrever, em busca de um jardim do éden que produzia todas as riquezas”. Não podiam vir mais enganados: “Davam-lhes duas tábuas compridas e dois bancos para as pôr em cima e era lá que eles dormiam. Lá ou em carqueja. E, mal chegavam a São Pedro da Cova, perdiam a identidade. Se vinha do Covelo era o Chico do Covelo, se andava mais mal arranjado, era o Zé badalhoco. Isto, parecendo uma insignificância, diz muito sobre a forma como eram tratados os trabalhadores.” A triste sina não era exclusiva dos “malteses”: de dentro ou de fora da freguesia, com trabalhos à superfície ou no subsolo, “todos foram miseravelmente explorados”, sublinha o autor, cujo livro Um Grito Que Rompe o Silêncio, uma compilação de depoimentos de quem trabalhou nas minas, vai ser agora reeditado pela junta de freguesia local.

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Rosa Martins de Sousa trabalhou nas minas mais de três décadas

Rosa Martins de Sousa, filha de mineiro e britadeira, britadeira se tornou. Suspira demoradamente ao recordar a casa onde vivia com os sete irmãos. “Tão pequenina” que a obrigava a dormir no chão — e muitas vezes no mesmo quarto dos rapazes. “A minha mãe, coitadinha, não tinha como nos separar.” Aos 15 anos, foi para as minas. Só saiu de lá em 1970, mais de três décadas depois. Cumpriu quase todas as tarefas destinadas às mulheres, mas é do trabalho nos tanques de lama, onde tinha de fazer o desmonte do carvão e transportá-lo depois em gigas levadas na cabeça, que mais más memórias guarda: “A gente pegava às oito e às oito e meia já era preciso tirar a roupinha toda. Se chovia, não nos deixavam abrigar. No terreiro, andávamos de joelhos a partir o carvão miudinho, à feição de o botar para o fogo, e quando nos queríamos levantar já nem sentíamos as costas. Mas preferia isso à lama.”

Os trabalhadores das minas laboravam sob vigia constante dos capatazes, responsáveis por definir o volume de trabalho que cada um devia cumprir por dia. “De manhã ia pela mina e dizia: ‘Tu tens de botar x [carvão], tu mais x, tu mais x.’ Se eles não botavam, eu tinha de participar deles e ficavam sem salário ou eram castigados”, recorda António Aguiar, antigo capataz com “mais de 90 anos”. “Custava-me fazer aquilo. Mas ganhava-se melhor e eu precisava do dinheiro.” Entre os encarregados, havia “os maus e os menos maus”, conta Rosa Martins de Sousa: “Havia uma mulher capataz que até era capaz de dizer para a gente ir para um sítio abrigadinho quando chovia. Mas se a gente não fizesse o serviço, ela pegava no caneco da água e deitava fora. A gente ficava o dia todo sem beber.” Medo das consequências? “A gente tinha medo era de ficar sem o salário. Numa altura, o capataz achou que eu estava a falar durante o serviço e castigou-me. Fui para casa. Não havia remédio. Quando fui receber, vi que queriam cortar-me meio dia. Era só um quarto. Fiquei cega! Fiz tanto barulho que me pagaram. Não me deixava vergar”, responde Maria de Almeida.

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António Aguiar foi capataz nas minas de São Pedro da Cova

Além do trabalho fisicamente esgotante, não havia garantias de segurança e, no subsolo, os “homens toupeira” estavam expostos à poeira causadora de silicose, doença pulmonar crónica e incurável que vitimou um número incalculável de pessoas em São Pedro da Cova. Manuel Reis andou pouco tempo na frente das marcas (onde se davam as explosões), mas a pré-reforma que conseguiu aos 57 anos conta parte das consequências da mina: foi aposentado por doença profissional, com “10% de silicose”. Debaixo de terra, a terra era outra. Trabalhava-se sem qualquer protecção contra o pó, às vezes com parte do corpo dentro de poços. Em alguns locais, o calor era de tal forma insuportável que, apesar do perigo extra de queimaduras, muitos dos mineiros preferiam trabalhar quase sem roupa, conta Manuel Teixeira Bento: “Era uma tangazita e tronco nu. A gente tinha uns calções, mas como se suava muito às tantas aquilo roçava nas pernas, com a areia do carvão, e fazia cieiro. Era doloroso. Então a gente enrolava os calções e ficava só com uma espécie de cinto, a tal tangazita.”

Não era raro que alguns mineiros se automutilassem: “Mesmo em prejuízo do dinheiro, que lhes fazia muita falta, pegavam num machado ou noutro objecto e cortavam-se nos pés, nos tornozelos ou nos pulsos para terem direito a uma semana de descanso”, conta em voz revoltada Serafim Gesta Mazola. Repouso só concedido em situações limite como esta. Ou quando o médico, por indicação da Companhia das Minas, dispensava os trabalhadores que apresentavam “sinais de silicose”. “Mandava os homens embora sem qualquer justificação, sem lhes dizer que estavam doentes, para evitar pagar indemnizações. Era cúmplice da empresa. O mais trágico é que, muitas vezes, essas pessoas estavam tuberculosas e, como não sabiam, acabavam por contaminar toda a família”, denuncia o investigador.

Serafim Gesta Mazola tem, a par do Museu Mineiro, o maior espólio sobre a vida nas minas
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Serafim Gesta Mazola tem, a par do Museu Mineiro, o maior espólio sobre a vida nas minas

Há um amontoado de caixotes de cartão no escritório de Mazola. Além do espólio do Museu Mineiro, criado em 1989 com a missão de valorizar e divulgar o património local, é ali que se guarda uma parte significativa da história das minas, diz orgulhoso e frenético enquanto puxa de um processo quase secular de um antigo trabalhador. Em 1930, Joaquim Júlio de Magalhães escreveu uma carta ao director das minas: “Encontro-me doente já vai para meio ano, deito sangue pela boca e mal posso trabalhar”, lê-se na ficha do trabalhador número 105. Pedia à empresa a misericórdia do descanso. Tempos depois, o homem acaba por morrer. “São às dezenas e dezenas os casos como este”, lamenta o sampedrense. Manuel Reis e Teixeira Bento confirmam. A companhia não mostrava qualquer preocupação com a saúde dos trabalhadores. E, quando morria um homem no fundo, tudo se fazia para que passasse despercebido, conta Teixeira Bento, tirando a boina por breves instantes como quem homenageia os esquecidos: “Eles só estavam preocupados com o trabalho, que não podia parar. O morto era metido numa berlinda e mandado para a farmácia da mina discretamente. Parecia um sapo ali dentro, encolhido e escondido.” Manuel Reis traz na memória um desses dias. Não sabe se houve silêncio ou gritos. Um amigo morreu-lhe à frente. Soterrado por uma chaminé tombada. “Nós tínhamos um fio que contactava com o exterior e puxávamos quando acontecia alguma coisa. Naquele dia, fui puxar e aquilo não funcionava. Vim a correr até cá acima. Mas já não havia nada a fazer.”

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Entre a PIDE e o PCP

Foi precisamente a morte de um trabalhador, em 1923, a motivar a primeira grande greve geral nas minas de São Pedro da Cova. “Foi uma greve muito significativa, relatada durante quase dois meses em vários números do jornal A Batalha, da Confederação Geral de Trabalhadores, uma organização anarco-sindicalista”, conta Daniel Vieira. Esta foi também uma greve que gerou “grandes movimentos de solidariedade, inclusive ao nível internacional”. O presidente da junta — que pertence à CDU desde 1982, apenas com a interrupção de um mandato, de 97 a 2001 — fez das lutas operárias nas minas locais objecto de estudo da tese de mestrado concluída no ano passado. Estudou a influência do Partido Comunista Português (PCP) na criação de uma consciência política e sentimento de revolta e na transformação desses factores em protesto na greve geral de 1946. “Deparei-me com uma greve que tinha como principal razão os salários baixos. A PIDE interrogou os mineiros. Nos arquivos da polícia política encontrei uma expressão repetida muitas vezes. Eles diziam: ‘Temos fome, não podemos trabalhar com fome’.”

O fardo da ditadura era evidente e apoiado por “vários movimentos, como a Legião [Portuguesa], a União Nacional e a própria PIDE, que tinha um coio de informadores locais”, conta Serafim Gesta Mazola. Com a crescente influência do PCP, que se reorganiza nos anos 40, os comunistas tornam-se aliados dos trabalhadores de São Pedro da Cova e, a partir de 1946, são várias as referências no Avante!, órgão oficial do partido, à greve nas minas. Além disso, “distribuem já comunicados aos mineiros, falando das condições de trabalho e fazendo apelos à mobilização e consciência de classes”, concluiu o presidente da junta de freguesia, também ele neto de um mineiro e de uma britadeira.

José Carlos Almeida foi durante alguns anos responsável da organização central do PCP no distrito do Porto e acompanhou de perto as lutas desta freguesia: “Os mineiros de São Pedro da Cova foram, a par dos pescadores, a classe de profissionais do Norte com um papel mais destacado nas lutas operárias.” Ainda que fossem muitas vezes motivadas por questões económicas, como sucede na greve de 46, as batalhas dos mineiros tinham “consciência política associada”, considera. “As pessoas mais activas não eram espontâneas, estavam organizadas partidariamente. O PCP tinha uma célula em São Pedro da Cova.” José Carlos Almeida não se recorda de muitos nomes — “a maioria usava pseudónimos” —, mas não esquece os bastidores da organização. “Reuníamo-nos muitas vezes com o organismo local num tasco em frente ao sanatório, à beira da estrada. A gente fazia a redacção de um texto apontando uma orientação, imprimia num copiógrafo e assinava ‘a organização local do partido’. Para os mineiros, era uma coisa muito importante.”

O complexo mineiro chegou a empregar 1800 pessoas, na altura da II Guerra Mundial cortesia museu mineiro
- Carvão era transportado em pequenos vagões suspensos para o Monte Aventino, no Porto cortesia museu mineiro
Os “homens toupeira” trabalhavam na mina sem qualquer protecção cortesia museu mineiro
- O cavalete do Poço de São Vicente foi construído em 1930. Há cinco anos foi classificado como monumento de interesse público cortesia museu mineiro
As mulheres empurravam vagões cheios de carvão. Para esta tarefa eram precisas três pessoas cortesia museu mineiro
As britadeiras tinham como função "partir o carvão miudinho, à feição de o botar para o fogo" cortesia museu mineiro
Aos homens cabia o destino fatal de trabalhar no fundo da mina cortesia museu mineiro
Eram as mulheres quem separava o carvão que chegava à superfície cortesia museu mineiro
Os trabalhadores cumpriam pelo menos oito horas de trabalho diárias cortesia museu mineiro
A escola onde os filhos dos trabalhadores estudavam cortesia museu mineiro
Era à farmácia que os trabalhadores se dirigiam quando queriam pedir descanso cortesia museu mineiro
Quando havia um acidente fatal, a vítima era colocada "numa berlinda e mandado para a farmácia da mina discretamente" cortesia museu mineiro
A broa era muitas vezes a única coisa que tinham para acompanhar o "caldo" cortesia museu mineiro
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O complexo mineiro chegou a empregar 1800 pessoas, na altura da II Guerra Mundial cortesia museu mineiro

A conclusão de Daniel Vieira aponta exactamente no sentido de uma intervenção dos comunistas na freguesia: “Fiz entrevistas a ex-mineiros e contaram-me que, como muitos deles não sabiam ler, encontravam-se em tascos ou mercearias locais e havia um companheiro do PCP que lhes lia o Avante! em voz alta.” A greve geral de 1946, acrescenta, significou uma importante conquista de direitos: “Fiz uma comparação das condições de trabalho e dos salários dos mineiros, e verifica-se, de facto, um aumento salarial. Foi uma greve com efeitos.”

O medo da repressão da PIDE era grande e a contestação quase sempre discreta. Mas arriscavam — e, volta e meia, uns panfletos contestatários apareciam pela freguesia. Manuel Reis preferia manter-se discreto. Conhecia bem o destino de quem não o fazia. Certo dia, já não sabe precisar em que ano, a polícia entrou pelo complexo dentro em busca de “desertores”. Foi uma grande zaragata. “Nessa altura, magoei-me de propósito para ir para casa. Não dava para reclamar muito... Quem o fazia, às tantas, desaparecia. Um dia chegávamos ao serviço e já não estava. Todos sabíamos que tinha sido levado pela PIDE.”

Com mais ou menos intervenção, havia entre os trabalhadores das minas um sentimento comum de injustiça e revolta. Afinal, todos trabalhavam em condições de segurança e higiene precárias, tinham salários miseráveis, sofriam castigos e repressão. Foi também essa realidade, explica o docente de História Jaime Guedes, a responsável pelo reforço de “laços de solidariedade” e pelo desenvolvimento de uma “identidade mineira, como o trabalhador que partilha experiências penosas e luta por melhores condições de trabalho”.

O fecho

No início dos anos 1960, o declínio do carvão, que vinha acontecendo desde o final da II Guerra Mundial, torna-se cada vez mais evidente, com a ascensão de outros combustíveis mais económicos, nomeadamente o fuel oil, derivado do petróleo. Por essa altura, as minas do Pejão já ultrapassavam as de São Pedro da Cova como as mais influentes do país. E, na freguesia de Gondomar, a capacidade de atrair trabalhadores era cada vez menor, também graças à vaga de emigração dos anos 60. A mina tinha deixado de ser rentável.

Seria essa a principal razão invocada pela Companhia das Minas no “aviso ao pessoal” afixado nas janelas do escritório no dia 4 de Março de 1970, onde se comunicava o encerramento da empresa. “Por manifesta impossibilidade económica de continuar com a exploração destas minas, em virtude do cancelamento das expedições para a Central da Tapada do Outeiro, e se terem gorado as negociações com a Companhia Portuguesa de Electricidade para a sua integração, sou encarregado de transmitir a todo o pessoal que a Exmª. Administração desta Companhia resolveu, ontem, parar a laboração destas minas a partir do dia 25 do corrente mês (exclusive).” O anúncio caiu como uma bomba. O complexo que por mais de dois séculos foi o maior empregador da freguesia ia fechar — e se isso significava a boa notícia do fim da “escravatura”, deixava também um gigante ponto de interrogação no ar: como seria o futuro daquelas quase mil pessoas, homens e mulheres iletrados, que só sabiam o ofício das minas, alguns com idade avançada, muitos deles doentes, portadores de silicose, pobres?

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Era uma realidade camuflada pela empresa a todo o custo. Com a conivência do Estado Novo. A miséria que apodrecia a terra mineira não devia ter eco e isso significava ter em acção permanente os serviços de censura. A edição censurada de um artigo do jornal O Século, com publicação prevista para o dia 21 de Março de 1970, é disso espelho. Parágrafos inteiros são riscados a azul: referências à fome, à miséria, às doenças de que os mineiros sofrem e ao futuro incerto dos mil trabalhadores (e dos cerca de quatro mil que constituem os agregados familiares respectivos) quase desaparecem. “Tenho 30% de silicose nos pulmões e isso não me facilita a ida para outro emprego, além de que não sei outra profissão. Vivo numa casa da companhia e também não sei para onde ir. Tenho nove filhos que vivem todos do meu trabalho, só o mais velho anda a trabalhar no Porto. São apenas 64 escudos por dia aquilo que eu ganho. Pouco, mas o suficiente para se ir vivendo. A casa era de graça... E agora? Vou pagar renda de casa? Eu que tenho seis filhos na escola... Emigrar? Razão tinham os centos deles que o fizeram há mais tempo e que insistiram comigo para que fosse também. Agora é tarde, com os meus 30% de silicose no corpo já não me aceitam nem aqui nem lá fora.” Este testemunho, por exemplo, foi completamente eliminado. O texto publicado, em contraponto, faz questão de referir que as minas “fomentaram o bem-estar social e material da terra e contribuíram para o seu progresso, progresso esse com que todos lucraram”.

A Companhia das Minas permaneceu na freguesia até 1972, para finalizar o desmantelamento da estrutura — fechou as portas, mas prolongou o monopólio que detinha na vila. Os bairros mineiros continuavam a pertencer à empresa e os habitantes eram obrigados a pagar rendas por casas minúsculas e sem condições. Em alguns casos, as indemnizações demoravam a ser pagas. Na esmagadora maioria, os mineiros eram prejudicados na avaliação médica e tinham, por isso, menos direitos.

José Teixeira das Neves e António José Correia: os homens que fizeram "a revolução" na freguesia
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José Teixeira das Neves e António José Correia: os homens que fizeram "a revolução" na freguesia

Esta névoa no lugar do futuro não derrubou o povo de São Pedro da Cova, talvez empurrado pela inevitável esperança de que o fim da “escravatura da mina” lhes trazia ou por um sentimento que Maria de Almeida resume numa frase curta: “Pior do que aquilo não havia de ser.”

Estávamos nos anos 70 e Portugal vivia o fim de uma longa e castradora ditadura. E isso sentia-se no ar. “As pessoas foram perdendo o medo e os sentimentos de injustiça e revolta cresciam de ano para ano”, descreve Serafim Gesta Mazola. O 25 de Abril de 1974 foi o empurrão. Mas “a verdadeira revolução” chegou a São Pedro da Cova pouco mais de um ano depois: 22 de Maio de 1975, o dia em que a população local ocupou os terrenos do antigo complexo mineiro e iniciou um dos processos revolucionários mais quentes do país.

António José Correia estava lá. Homem da companhia local Teatro Círculo, viveu sempre em São Pedro da Cova, mas nunca foi condenado às minas. “A minha família não teve esse destino, mas todos os meus amigos eram filhos de mineiros, toda a vida aquilo fez parte de mim.” Fazer parte do grupo que iniciou a “revolução” na freguesia foi, por isso, mais do que natural. Sem líderes assumidos, o núcleo que planeou a invasão dos escritórios da empresa — completamente deixados ao abandono — era constituído por professores da escola secundária local, actores do Teatro Círculo e um grupo mais político, maioritariamente composto por militantes do PCP. “Desde o fecho das minas, as pessoas tinham na cabeça que aquele espaço devia pertencer à freguesia. Pessoas daqui deram o sangue lá. Muita gente morreu, muita gente ficou doente. Nós queríamos, ao menos, devolver-lhes o que lhes pertencia”, desenvolve José Teixeira das Neves, militante comunista e primeiro presidente da comissão administrativa de São Pedro da Cova.

Foi um processo verdadeiramente intenso. Um dia após a invasão, duas mil pessoas juntaram-se no complexo mineiro e em plenário nasceu o Centro Revolucionário Mineiro (CRM), típica organização do PREC. Decidiu-se, por exemplo, que as rendas das casas dos bairros mineiros passariam a ser pagas ao próprio CRM, que constituiria um fundo financeiro para usar em benefício da população. Fizeram-se obras nas casas dos antigos trabalhadores, reconstruíram-se ruas, ergueram-se parque infantil, teatro, farmácia e posto médico. Num segundo plenário, juntaram-se “umas cinco mil pessoas” no campo de futebol, lembra José Teixeira das Neves. O envolvimento e o entusiasmo da população era grande. Nos escritórios do complexo mineiro, onde o CRM constituiu sede, foram descobertos os “cadastros”. Permitiu revelar finalmente os verdadeiros índices de silicose que os consumiam. “Isso subiu-lhes a reforma. E deu outras a viúvas sem nada.” Durante três anos, não houve um dia em que a sede do CRM não estivesse ocupada 24 horas por dia. “Muita gente disponibilizou a vida para aquilo. Dormíamos lá. Fazíamos vigília constante”, recorda António José Correia. Vivia-se o pico do Verão Quente e as sedes do Partido Comunista eram frequentemente incendiadas. “Nunca tivemos problemas de maior, mas era preciso manter os olhos abertos.”

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Cortesia Rui Simões/ Real Ficção

Manuel Correia Fernandes lembra-se bem do dia em que tudo começou. O arquitecto, responsável pelo processo SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) em São Pedro da Cova, estava em casa, no Porto, quando três pessoas da freguesia de Gondomar lhe bateram à porta. “Era o chefe da brigada SAAL e talvez vissem em mim uma espécie de autoridade”, recorda com um sorriso. “Fui com eles ao quartel-general na Praça da República comunicar ao oficial de dia que tínhamos ocupado os escritórios. Ele olhou para nós e disse que estava tudo bem, que não tínhamos de fazer nada. Foi tão insólito quanto isso.”

A intervenção SAAL, projecto arquitectónico e político criado poucos meses depois do 25 de Abril de 1974, durou menos de dois anos na terra mineira, mas teve “uma dimensão política e social enorme, bem maior do que a verificada no Porto”. Ao chegar ao local, Correia Fernandes — que contava com o apoio de um grupo de estudantes de Arquitectura previamente instalados — deparou-se com um imenso “bairro clandestino”. O Bela Vista, com mais de mil casas construídas pelos antigos trabalhadores que iam abandonando os bairros mineiros, foi o território definido para a intervenção do SAAL — e a missão era complexa. “O normal nas operações SAAL era fazer casas. Ali, o desafio era completamente diferente”, recorda o arquitecto. Ajudar os cidadãos a alterar as habitações para que pudessem ser legalizadas e intervir no espaço público (iluminação, água canalizada e saneamento não existiam), construindo alguns equipamentos comuns foram as intervenções prioritárias. Foi um período “impressionante”. “Havia muitos estudantes de Arquitectura e arquitectos que passavam o dia em São Pedro da Cova. Dormiam nos escritórios ou nas casas das pessoas de lá. Criaram-se relações sociais e humanas comoventes.”

Comoção. Palavra que resume bem o sentimento de António José Correia e José Teixeira das Neves ao pisar o agora completamente degradado escritório da Companhia das Minas. Não entravam no complexo desde que o CRM se extinguiu. Foram sete longos anos de uma luta que beneficiou muita gente. Mesmo não tendo cumprido um dos principais objectivos: o de expropriar o complexo e fazer com que passasse a ser propriedade da freguesia. “Estar aqui e olhar para isto assim... dá aquela mágoa. É como se a gente tivesse perdido um filho”, matuta António José Correia. Falta a voz ao companheiro de luta José Teixeira das Neves, para quem o sucesso dos projectos do CRM era uma questão muito pessoal: “Nunca trabalhei aqui, mas a minha família sim. No último dia em que o meu pai trabalhou nas minas mandou um recado para o chamarem. Estava sentado em cima dos canos de água e não podia com o gasómetro nem com o machado. Tinha nove anos e vim buscar-lhe as ferramentas. Marca sempre a gente. O meu pai era um homem exemplar. Morreu aos 55 anos por causa da silicose. Tinha 100%”, recorda emocionado. “Perder isto custou.”

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O cinema como arma política

A bravura e a vida dos homens e mulheres de São Pedro da Cova fora documentada em As Minas de S. Pedro da Cova, filme mudo de 40 minutos que a Invicta Filmes realizou em 1917. Mas o documentário que marcou a freguesia — despertando a Europa para a sua existência — foi outro. O realizador Rui Simões chegou à terra em 1976, a convite da Direcção-Geral de Educação Permanente, liderada por Alberto Melo, que tinha em curso uma campanha de alfabetização de adultos. “Fui convidado a realizar uma formação que levasse as tecnologias ligadas à imagem e ao som ao núcleo que sustentava São Pedro da Cova, o Centro Revolucionário Mineiro”, recorda. Foi a partir do trabalho realizado nessas sessões que o filme São Pedro da Cova, repartido em três curtas-metragens de 15 minutos, se desenvolveu: “Limitei-me a coordenar e a ser uma espécie de mestre de cerimónias no meio dos desejos deles.” O realizador, que criou entretanto a produtora Real Ficção, lembra-se perfeitamente do primeiro impacto que a vila lhe causou: “Foi o pior possível. Tudo aquilo era muito pobre, as crianças ainda de pé descalço. Na altura foi muito chocante, era talvez das aldeias mais deprimentes do país.” Em antítese com esse cenário, Rui Simões deparou-se com “uma vontade de evoluir notável”: “Tinham uma linguagem forte, consciente, lúcida em termos de classe. Tinham perfeita noção de que tinham sido explorados e, apesar de não terem formação para fazer mais nada, havia uma força revolucionária muito grande. A história sempre se fez a partir dos que mais sofreram, são os que mais puxam para a frente.” O cinema como “arma política” era nessa altura um medicamento de efeito lento. Mas houve efeitos que cedo se manifestaram: em 1977, o filme realizado em 36mm e a preto e branco foi a única produção portuguesa seleccionada oficialmente para o Festival Internacional de Cinema de Berlim.

Há uma bruma especial que paira sobre São Pedro da Cova. À história negra junta-se um carregado sentimento de orgulho. Opressão, miséria, fome e medo esmorecem perante o brio de ter combatido. De ter sobrevivido. “É difícil explicar. Há por aqui um sentimento de pertença único, muito criado pelo trabalho, mas não só”, considera Daniel Vieira, dando um exemplo de um comportamento típico das gentes da freguesia que espelham bem essa ligação: “Quem vive em freguesias de Gondomar diz geralmente que é de Gondomar, mas quem vive em São Pedro da Cova, freguesia de Gondomar, diz só que é de São Pedro da Cova.” A “herança pesada” dos quase dois séculos de mina não se rasura. Os níveis de qualificação dos sampedrenses continuam baixos, a população maioritariamente envelhecida também. São quase 17 mil pessoas. “Às vezes, costumo perguntar se alguém conhece alguma região que tenha recursos naturais e seja rica”, desafia Daniel Vieira. “Em quase todas, foi gente de fora explorar esses recursos e quando eles deixaram de ser rentáveis foram-se embora. Aconteceu aqui. Foi retirada muita riqueza de São Pedro da Cova, mas nenhuma ficou por cá.”

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