Quando as crianças se tornam pequenos ditadores

Já há denúncias de filhos que agridem os progenitores. Esse número não é maior por vergonha e desculpabilização

a Eles não são muito difíceis de identificar. Encontrámo-los na escola, no café, no supermercado, em casa dos amigos... É o menino de seis anos que dá o pontapé à mãe e esta sorri, ao mesmo tempo que diz "isso não se faz". É a menina de três anos que faz uma fita tremenda, porque não quer comer a sopa, entorna o prato e é recompensada com um bolinho, para, "coitadinha, não ficar com fome". Aos olhos dos pais, os seus meninos são "pequenos tiranos adoráveis", com "personalidades muito vincadas", enquanto para os demais não passam de uns "intrometidos malcriados". Quem o diz é o psicólogo espanhol Javier Urra, que os apelida de "manipuladores" e "caprichosos". O Pequeno Ditador: da Criança Mimada ao Adolescente Agressivo é o título de Javier Urra, publicado pela A Esfera dos Livros. O pequeno ditador é o "príncipe da casa", é o filho caprichoso que dá ordens aos pais, mas que, com o passar do tempo, se pode transformar num adolescente agressivo, alerta o psicólogo clínico. "Este tipo de comportamentos faz temer uma adolescência conflituosa", alerta Urra, que foi o primeiro provedor de menores em Espanha (entre 1996 e 2001).
Em casa, estes filhos podem bater nos pais, roubar-lhes dinheiro, mas também podem entrar nos circuitos de delinquência. O fenómeno está bem identificado em Espanha, onde o ano passado houve sete mil denúncias de pais agredidos por filhos.
À Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) chega um número reduzido de queixas de que jovens agridem os pais e não têm qualquer perturbação psíquica, informa Daniel Cotrim, psicólogo clínico. "São jovens, de todas as classes sociais, que os pais colocaram no centro do seu mundo e eles põem e dispõem na estrutura familiar", retrata. "As crianças maltratadoras, que insultam os pais, que agridem física e psicologicamente, são produto de uma sociedade que, quando considerou o século XX o século da criança, provocou profundas alterações no modelo educativo", e os resultados nem sempre foram os esperados.
"Não se prepararam as crianças para os "nãos da vida", analisa Manuel Coutinho, psicólogo e secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança. "Em geral, são crianças muito bem cuidadas", descreve Javier Urra, porque as famílias dão-lhes tudo. "Costumo dizer que há uma geração que nunca comeu o peito do frango, porque os seus pais comiam a melhor parte. Quando cresceram e se tornaram pais, deram o melhor do frango aos filhos", continua Manuel Coutinho.
O problema é os pais não estabelecerem limites e regras, concordam os especialistas. Quando vão à consulta, os adultos "chegam sem forças", porque os filhos "exigem, testam-nos até ao limite e nunca percebem quais são os limites, porque os pais não os estabelecem", diz Maria João Santos, do Espaço para a Saúde da Criança e Adolescente, em Lisboa.
"Psiquiatras, psicólogos infantis e professores enfrentam um problema educativo, para cuja solução se requer em primeiro lugar que os pais aprendam a sê-lo", escreve Javier Urra. "A família é um termómetro do sistema, o seu fracasso antecipará uma desordem geral", alerta. "Os pais têm de perceber que os limites são necessários", afirma Maria João Santos. "Infelizmente, muitas crianças que cresceram sem regras acabam nos tribunais e são os juízes quem lhes marca a fronteira entre o que é permitido e o que é proibido", acrescenta Manuel Coutinho. Mas se forem devidamente acompanhados poderão "transformar-se em bons cidadãos", observa Daniel Cotrim.

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