Helena Cidade Moura (1924-2012) A altiva senhora que queria ensinar a ler

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João Paulo Trindade/LUSA

Uma mulher de amores calmos, mas enérgica. Bebeu-os primeiro entre os camaradas de curso, "colheita vintage" da Faculdade de Letras de Lisboa, em paralelo com a devoção do companheiro e pai dos seus filhos. Mais tarde, à beira da cinquentena, dedicou-se por inteiro aos amigos do MDP/CDE. Sem esquecer a tutelar figura paterna, o filólogo Hernâni Cidade. Nem os humilhados e ofendidos dos bairros operários

Um curso de excepção o de Helena Cidade Moura. Dele saíram Maria de Lourdes Belchior, Matilde Rosa Araújo, Maria Barroso, Sebastião da Gama, Lindley Cintra, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues... Era um tempo em que na Europa se matava e morria num genocídio sem nome e, em Portugal, o racionamento trazia a fome e o Estado Novo a paz podre dos cemitérios, como escreveu António Sérgio.

A Helena Cidade Moura que na passada sexta-feira, 21 de Julho, se despediu de nós tinha uma imagem de marca - a madeixa branca que se lhe prendia entre os cabelos, puxada atrás como se fosse uma asa a querer libertar-se. Não era a única. Nos elogios que cobriram o féretro sublinhou-se o seu papel na alfabetização de adultos e a vivência política no Portugal democrático. Talvez porque os tempos são árduos e secam a memória próxima, ficou por recordar a associação cívica Civitas e o esforço que manteve até ao fim para elevar a literacia da sociedade portuguesa e melhorar culturalmente as suas elites.

A jovem Helena foi uma menina prendada. Os pais e avós, de raízes alentejanas, entre Évora e o Redondo, eram proprietários abastados e a vida lisboeta cedo se tornou o seu ambiente familiar, com um pai absorto na erudição clássica e uma mãe dedicada ao lar, como era de regra.

A escolha do curso de Românicas, como então se designava a área dos estudos das literaturas latinas, apareceu como coisa natural, por ser menina e, sobretudo, por em casa se respirar em contínuo o pó dos livros. A expectativa de uma carreira académica era natural e ainda hoje fica a interrogação porque a não abraçou, até porque toda a sua vida profissional, em paralelo com a da intervenção cívica, é preenchida pela investigação e ensaio literário. Na Biblioteca Nacional há 138 entradas com o seu nome, na maioria dedicada a Eça de Queiroz. Na criação pessoal não tem obra de ficção, mas a poesia foi um terreno que lavrou com esmero. A primeira publicação, de 1955, teve por título O Mundo sem Limites e seis anos depois editou, com a chancela de Livros Portugal, O Tempo e a Esperança. O seu terceiro livro, da Ática, saiu em Maio de 1963, em capa branca, com alto-relevo da editora, e recebeu o nome de Memória e Ritual, onde a poesia surge decantada e é de uma pureza cristalina. Parecia que forma e substância se tinham encontrado na sua linguagem, mas afinal foi uma despedida.

A sua poesia reflecte dois aspectos constituintes da sua personalidade: a convicção cristã e expressão da sua singularidade. A quem a conheceu e com ela pouco conviveu deixou uma imagem de uma pessoa distante, que olhava de cima, até porque para os padrões portugueses era uma mulher alta. Uma frieza acentuada pelo rigor com que desempenhava as tarefas que aceitava. Num país onde ser pontual não é imagem de marca, Helena Cidade Moura deve ter perdido muito tempo à espera dos outros. É mais do que provável que por vezes tenha expresso com rispidez essa indelicadeza, afastando com alguma acrimónia as desculpas esfarrapadas dos interlocutores em falta.

Não era de todo essa a Helena que conheceram os que com ela privaram, como testemunha o camarada de curso Urbano Tavares Rodrigues, ou o parceiro das lides políticas no MDP/CDE, José Manuel Tengarrinha. Deste lado, o que ressalta na emoção do testemunho é a mulher afectiva, sempre com um apontamento de ternura nos diminutivos que inventava para os distinguir, um convite permanente de amizade, uma capacidade sem falha para amar os seis filhos e ainda sobrar outro tanto para alegrar os que para a sua casa convidava. Acrescente-se, porém, que era reduzido este círculo de amigos que podia entrar na privacidade do lar.

A sua convicção religiosa católica, sem ser beata, nunca foi questionada. Acaso será mais exacto dizer que a sua profissão de fé era, sobretudo, cristã, o que a fez ligar-se ao grupo dos católicos progressistas, mais próximos do testemunho dos Evangelhos do que da liturgia da Igreja, mesmo se a ligação foi pontual. Joana Lopes, autora de Entre as Brumas da Memória - os católicos portugueses e a ditadura, que foi uma activista deste grupo desde 1962, realça a presença do seu nome no Manifesto dos 101 católicos, de 4 de Outubro de 1965, onde se critica o que os subscritores consideram de "cumplicidade" entre a hierarquia da Igreja católica e o regime em relação à guerra no Ultramar. Foi, também, um apoio à oposição democrática em ano de eleições para a Assembleia Nacional, com o triunfo garantido e em exclusivo das listas da União Nacional.

Compromisso político

A outra Helena, a da intervenção cívica e política, levou tempo a afirmar-se. A sua figura erecta, de deputada eleita pela Aliança Povo Unido, na legislatura de 1980, que deu a segunda maioria absoluta à AD de Sá Carneiro, bem como na de 1983/85, do Governo de bloco central Mário Soares/Mota Pinto, marcou a presença de uma personalidade sénior, a aproximar-se dos sessenta anos.

Esta Helena, salienta Tengarrinha, surgiu na campanha eleitoral de 1969, desenvolta e activa, no quadro das "comissões democráticas eleitorais" (CDE). Ainda não existia o MDP/CDE, o que só vai acontecer em 1974, já em plena polémica partidária democrática.

Ela trouxe, diz Tengarrinha, uma maneira nova de fazer política, renovando o vocabulário de uma "oposição democrática" desgastada por um combate de décadas contra o Estado Novo. "As suas qualidades pessoais, intelectuais e de dedicação levaram-na naturalmente à direcção política", trazendo para o centro da agenda política questões como a alfabetização e a participação cívica, o que contribuiu para dar às CDE a vivacidade de movimento cívico e não apenas de movimento eleitoral.

Num ápice, o nome de Paulo Freire e o seu método de alfabetização de adultos tornou-se popular e despertou entusiasmo nas camadas universitárias, dos católicos aos marxistas-leninistas, mesmo se com motivações diferentes - apostólicas, de um lado, de consciencialização política do outro.

Urbano Tavares Rodrigues, que então militava já no PCP clandestino, recorda-se da participação de Helena Cidade Moura em manifestações onde era forte o risco de intervenção da polícia de choque e destaca a "enorme firmeza e coragem física" da sua antiga condiscípula. Apenas lhe encontrando um defeito - a aproximação, no quadro da educação de adultos, com José Hermano Saraiva, também recentemente desaparecido. Saraiva era ministro de Salazar e, no contexto da oposição à ditadura, essa colaboração podia ter uma outra interpretação.

Não teve. Helena Cidade Moura dialogou com Hermano Saraiva na esfera em que tinham afinidades de programa e nada mais. As susceptibilidades eram vivas por esse tempo entre os meios da oposição e Maria Barroso, sem deixar cair a amizade com a antiga companheira de estudos - "se bem que mais velha um ano" -, salienta que "o tema das conversas era a família" e que, embora "respeitada e querida nas relações pessoais", o certo é que as afinidades políticas as tinham afastado. Maria Barroso foi para a CEUD, coligação eleitoral criada pela Acção Socialista Popular, com Mário Soares, e Helena Cidade Moura seguiu, com o marido Domingos Moura e o cunhado, Francisco Pereira de Moura, a corrente católica progressista que engrossou a CDE.

Compromisso cívico

Quando o MDP/CDE, fundado em 1974, decidiu apresentar-se autonomamente às eleições para o Parlamento Europeu, em 1987, houve um momento de tensão interna grave.

Para Corregedor da Fonseca, que deixou o MDP/CDE e esteve na criação da Intervenção Democrática (ID), coligada eleitoralmente com o PCP, o que esteve em causa "foi a quebra da unidade de esquerda". Para a universitária Alfreda Cruz, com a plena concordância de José Tengarrinha, a questão foi "o fim da unicidade" partidária, atitude que "o PCP não aceitou e não se discute o seu direito" de assim proceder. A posição de Helena Cidade Moura, que "sempre pugnou pela independência do MDP/CDE" e não era "uma apóstola da coligação APU", na expressão de Alfreda Cruz, foi a de sempre: firme na decisão tomada.

Passou a ser uma presença quase constante ao lado de Tengarrinha na defesa das decisões tomadas, em contraste com outros membros da direcção, que preferiram retirar-se para a vida académica ou para a vida profissional, para pouparem as amizades antigas.

Tem o seu dedo, mesmo se a letra é de Joaquim Pessoa e a música de Pedro Osório, ambos já falecidos, o manifesto da campanha eleitoral de 1987, onde se exprime o corte com o PCP. Vale a pena citá-lo: "Não parar o vento // não erguer o muro // Este é o momento de fazer futuro. // Desta vez é outra voz // é a voz de quem sonha // que a vida plena // não é só viver // é, também, escolher!" O resultado foi paupérrimo, o MDP/CDE obteve 0,49% dos sufrágios.

A última decisão política foi, provavelmente, a da criação da Política XXI, com o grupo da Plataforma de Esquerda que se recusara a entrar no PS. Em 1994, ainda concorreram às eleições europeias, com Ivan Nunes em cabeça de lista, sem grande êxito. Entretanto, a Política XXI estabelece uma plataforma de negociação com a UDP e o PSR, com vista à constituição do Bloco de Esquerda e alguns seguem esse caminho, como Alfreda Cruz, Mário Casquilho ou Silveira Ramos. Outros evitam-no, como Helena Cidade Moura, Amaro Espírito Santo e outros, que se aproximam do PS, quando António Guterres, católico como eles, assume a liderança.

O MDP/CDE de Tengarrinha e Helena Cidade Moura tentou ainda reflectir sobre os caminhos para "um partido que sempre foi mais movimento do que partido". Cidade Moura propôs que se investisse na promoção das associações cívicas e ela própria deu o exemplo criando a Civitas, com o coronel Vítor Alves. A Associação para a Defesa e Promoção dos Direitos do Cidadão, Civitas, surgiu em 1989 e propunha-se ter "uma intervenção de âmbito nacional" segundo uma "lógica de cultura em rede".

Helena Cidade Moura aproveitou esta nova estrutura para lançar um projecto que, de certo modo, era a continuação da alfabetização popular - a promoção da literacia na sociedade e a sua aceitação como valor entre as elites.

Naquela que foi provavelmente a sua última intervenção pública, a apresentação em 2007 do livro colectivo Literacia em Português, Helena Cidade Moura confirmou o seu projecto de intervenção cívica e cultural: "Pretende-se com este livro difundir o interesse e a capacidade de análise despertados para o fenómeno da literacia, que tem atrasado, nos últimos anos, o nosso caminhar colectivo, tem afectado a capacidade de organização da nossa vida em comum, tem ajudado a adormecer a consciência cultural do país".

Helena Cidade Moura casou com Domingos Moura (1920-2007), catedrático do Instituto Superior Técnico, e foi mãe de seis filhos: Helena Maria, Domingos António, Miguel, Luís Manuel, Maria Margarida e Maria da Graça.

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