Ventura, o racista corajoso

Numa só coisa tem André Ventura razão, mas por motivos rigorosamente inversos.

Dois dias depois de uma esquadra inteira, a de Alfragide, ser acusada pelo Ministério Público pelos crimes de tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física qualificada, agravados por ódio e discriminação racial, um Trump de trazer por casa, André Ventura, candidato PSD a Loures, decidiu usar em campanha eleitoral autárquica os mais clássicos argumentos do racismo:

1. Etnia desonesta: do alto do seu doutoramento em Direito Público, Ventura acha que os ciganos "não interiorizaram o Estado de Direito", fazem o que querem e "sentem que nada lhes vai acontecer", e "ninguém faz nada". Subdiretor de um mestrado em Direito e Segurança, e campeão da inversão descarada de argumentos, o candidato que deve ter sido escolhido porque comenta futebol na TV finge ignorar que fala da comunidade étnica mais condenada pela justiça e mais vigiada pelas autoridades policiais deste país em proporção à sua dimensão demográfica (menos de 0,5% dos portugueses são de etnia cigana, mas 5-6% dos detidos nas prisões portuguesas, dez vezes mais, são ciganos).

2. Criminalização da pobreza: preocupado com a "segurança", Ventura propõe videovigilância nos bairros sociais, porque são "bairros problemáticos", onde há "notícias de tiroteios". É a mais velha convicção das direitas: muitos pobres são criminosos, os criminosos têm de ser vigiados, logo os pobres têm de ser vigiados.

3. Minoria privilegiada: impunes, os ciganos "vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado". Não é, evidentemente, verdade, mas Ventura poderia lembrar-se que as prestações sociais devem recair nos mais pobres — e os ciganos estão, desde sempre, entre eles. Mas não: o Estado (ou, neste caso, a Câmara de Loures, dirigida pela CDU) é que tem um "[pre]conceito ideológico de achar que há determinados grupos que, por pertencerem a determinadas minorias, têm de ter um tratamento diferenciado" (Notícias ao Minuto, 12.7.2017). Segue-se o "eles" e "nós": os ciganos são uma "minoria de privilégio", por oposição às "pessoas ditas 'normais' [sic] ou da 'maioria'" que terão passado a ser, segundo ele, discriminadas.

4. As minorias impõem tabus: como Trump com os mexicanos, como Le Pen com os árabes, Ventura acha que veio tocar num "tabu": "toda a gente se aproxima de mim para dizer: 'Obrigado, André, por teres discutido um problema que ninguém tem coragem de discutir'." Ventura atreve-se a falar como se todos, no fundo, concordássemos com ele mas tivéssemos "medo de dizerem que estamos a ser 'fascistas', “racistas', 'xenófobos'" (Sol, 17.7.2017).

5. Os racistas nunca são racistas: "Nada me move contra a comunidade cigana, [...] ao longo da minha vida sempre convivi bem com pessoas de várias raças e etnias e diferentes credos." Passos Coelho assegura que o PSD "nunca foi, não é e nunca será racista e xenófobo". Le Pen, pai e filha, nunca disseram outra coisa. Como Ventura, acham todos que o preconceito está é na cabeça dos outros, dos "politicamente corretos", como agora, sem pudor algum, a direita passou a chamar a quem denuncia o racismo, a homofobia, a misoginia...

Ao se recusar a proceder como lhe pedem há anos a ONU e a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa, publicando dados fiáveis "para efeitos de monitorização das desigualdades" entre grupos étnicos, e especialmente relativamente a ciganos e afrodescendentes, o Estado português "recusa-se tacitamente a tomar medidas eficazes para avaliar (e combater) a discriminação étnico-racial" (Marta Araújo, investigadora do CES, PÚBLICO, 14.7.2017). E, por isso, propicia este discurso nauseabundo de que "temos tido uma excessiva tolerância com alguns grupos e minorias étnicas".

Numa só coisa, tem Ventura razão, mas por motivos rigorosamente inversos: "Não se corrige a situação enquanto não se assumir que o problema existe." O verdadeiro problema, o do preconceito racista, não é exclusivo da direita, extrema ou não. Ele também emerge à esquerda, em todas as gerações, regiões, classes sociais. A diferença é que é à direita que ele se sente à vontade. E não precisa de se organizar autonomamente na extrema-direita: ele está bem representado, como se vê, nos partidos da direita clássica, como o PSD.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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