Venezuela: não abandonar a comunidade portuguesa à sua sorte

Será que alguém no Governo está a contemplar uma eventual necessidade de repatriamento de portugueses e a preparar o dito plano?

1. Pelas piores razões, a Venezuela anda nas bocas do mundo. A degradação abismal das condições de vida até ao limiar da fome, a instauração de um duríssimo regime ditatorial e a generalização da violência nos umbrais de uma guerra civil justificam completamente esta onda global de atenção. O nosso primeiro pensamento tem de estar com o povo venezuelano, entalado entre a descida à miséria e a crescente opressão política. Tem de ser essa a preocupação precípua da comunidade internacional, da União Europeia e também do Estado português. Assente esta prioridade, o intenso debate político e até ideológico que está em curso em Portugal suscita uma oportunidade para fazer algumas observações críticas e para levantar novas preocupações. 

 

2. Antes do mais, importa notar que a deriva para a ditadura é co-natural ao socialismo bolivariano. Não subsistem dúvidas de que Nicolás Maduro, quiçá por desespero, acaba de vibrar o golpe final em qualquer resquício ou vestígio de democracia. A eleição de uma Assembleia Constituinte à margem de qualquer procedimento estabelecido previamente, a destituição da procuradora-geral, a repressão violenta das manifestações de rua, a detenção ilegal de líderes da oposição, a aparente invenção de conspirações e pretensos golpes militares (à moda de Erdogan) são sinais claros da implantação de um regime ditatorial. Mas esses sinais estavam já inscritos no projecto político de Hugo Chávez. O “chavismo” e o “socialismo bolivariano” são totalmente hostis e avessos ao modelo democrático do Ocidente. Não pode alinhar-se nesta vaga que procura diabolizar Maduro e incensar Chávez. Entre Chávez e Maduro, há uma diferença notória de carisma e de condições políticas objectivas (como bem atesta a descida do preço do petróleo). Mas a diferença é de grau, não de qualidade. O socialismo bolivariano — sempre ligado a Cuba e à Rússia e com importantes ramificações na Bolívia e no Equador — é intrinsecamente antidemocrático. Na cabeça de Chávez esteve sempre um projecto de concentração do poder e, bem vistas as coisas, de um poder pessoal e carismático. O “chavismo” é um populismo, na mais ortodoxa tradição latino-americana. A condução de Chávez foi decerto mais hábil e beneficiou de conjunturas mais benévolas do que a de Maduro, mas não haja ilusões: o destino a que aspirava não era diverso daquele a que acaba de se chegar.

 

3. É justamente por isso que tem de ser denunciada e deplorada a reiterada posição do Partido Comunista Português de defesa do regime venezuelano. Nada que surpreenda, pois o PCP nunca se reviu no modelo democrático, antes fazendo a apologia de regimes totalitários como o comunismo soviético ou de ditaduras paranóicas, inspiradas no princípio monárquico, como a que vigora na Coreia do Norte. A defesa dos direitos fundamentais e do primado da pessoa sobre o Estado, a separação dos poderes, a independência judicial, a liberdade de expressão e de imprensa não fazem parte da concepção de “democracia” que os comunistas alardeiam. E daí que se compreenda que um regime como o venezuelano lhes possa parecer tão simpático. Já nas hostes do Bloco de Esquerda as posições são mais matizadas e surge agora uma linha de demarcação e de distanciamento da liderança venezuelana. Mas essa demarcação não vai ao ponto de condenar o “chavismo” — que é a verdadeira raiz antidemocrática do regime — e está cheia dos tais matizes, em que, ainda que se lamente ou até condene, também se transige, compreende e justifica. Nada, portanto, que nos possa tranquilizar. Em contrapartida, merece reconhecimento a atitude de várias e relevantes personalidades da esquerda radical que têm sido veementes na condenação da situação venezuelana e que têm feito a pedagogia de que uma “ditadura será sempre uma ditadura”, quer se diga de direita, quer se reivindique de esquerda.

 

4. A respeito da posição do Estado português, veiculada pelo Governo, permanece um manto de ambiguidade e indefinição. Compreende-se a complexidade e delicadeza da situação, atenta a enorme dimensão da comunidade portuguesa que reside na Venezuela (aí incluídos os luso-descendentes). Mas, mesmo tendo isso em conta, não me revejo nos elogios do PSD: os esclarecimentos do ministro dos Negócios Estrangeiros têm sido sistematicamente feitos a reboque dos acontecimentos, quase sempre sob pedido ou exigência de sectores da opinião pública e invariavelmente tardios. Aliás, a crise humanitária que assola o país está em curso há muito tempo e a acção do ministério limitou-se a um conjunto de visitas do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. Ministro, nem vê-lo. À semelhança do primeiro-ministro, sempre que há dificuldades políticas, procura eclipsar-se, reenviar o problema para o nível político imediatamente inferior e passar tão despercebido quanto possível. Nas últimas semanas, e não podendo viver mais em estado de negação, apareceu contrafeito e a contragosto a tentar desvendar o mistério sobre o que pensa o Estado português e o que pode ou quer fazer. Mistério que permanece insondável.

No meio desta apatia ministerial e governamental, há algo que tem de nos preocupar enormemente. Dadas a escalada dos acontecimentos, a espiral de violência a raiar a guerra civil e a escassez de medicamentos e alimentos, não pode excluir-se uma eventual necessidade de repatriamento de dezenas ou até centenas de milhares de portugueses. Sobre essa eventualidade e o plano de contingência que ela supõe e requer não existe uma única informação. Mesmo que se invoque a necessidade de discrição, será que alguém no Governo está a contemplar esta hipótese e a preparar o dito plano? Há algo que parece evidente, mau grado todas as dificuldades: não podemos abandonar a comunidade portuguesa à sua sorte.

 

SIM

Caetano Veloso O mundo seria diferente, seguramente pior, sem o canto de Caetano. Celebra 75 anos e com ele celebra toda a cultura lusófona. Se o deus dos poetas tivesse voz, cantava assim.

NÃO

Imposto Mortágua O Governo e o Bloco continuam o seu ataque à propriedade e ao aforro, já demasiado onerados. A austeridade disfarçada, que penaliza a iniciativa, segue firme, hirta e viçosa.

Sugerir correcção
Ler 11 comentários