Um partido que se desmente a si mesmo

Quando digo que em tempos teve até excelentes ideias, sai célere para as redações um “desmentido”!

Na passada sexta à noite a minha mais recente crónica nesta coluna foi honrada com atenção especial por um partido político, o Bloco de Esquerda, que enviou para as redações um comunicado com o título “Bloco desmente Rui Tavares”. Esse “desmentido” pretendia negar que na candidatura do Bloco de que em 2009 fiz parte como independente se defendessem ideias como a de uma Constituição para a UE redigida no Parlamento Europeu ou a de um senado europeu (ou seja, uma câmara alta legislativa onde todos os estados tivessem assento em condições de igualdade).

Ora, se o Bloco me “desmente” é porque alega que eu minto. E ainda por cima, que minto aos leitores do PÚBLICO. Isso merece aqui resposta.

Começarei dizendo que o Bloco pretende “desmentir-me” remetendo para um compromisso político de 2009 no qual está preto-no-branco que o partido era então “favorável à elaboração de um novo Tratado Europeu pelo Parlamento Europeu”. Estranho “desmentido” este que confirma o que eu tinha escrito, pois esse tratado era o sucessor do Tratado Estabelecendo uma Constituição para a Europa, como adiante se verá.

Prossigamos. Não poderia ser mais claro nem mais inequívoco um texto que Miguel Portas, escrevendo oficialmente como único eurodeputado do BE e dirigente do partido, publicou neste jornal em 3 de julho de 2007 defendendo precisamente as ideias de um Tratado Constituinte e de um Senado europeu que tanto incomodaram o Bloco de sexta-feira à noite.

Os itálicos são meus. Sobre a Constituição europeia: “A alternativa ao defunto Tratado Constitucional é um novo Tratado Constitucional. A sua redacção seria da competência do próximo Parlamento Europeu”. Assunto encerrado. Sobre o Senado europeu: “O novo tratado respeitaria a soberania dos estados e a dos cidadãos. Esta tensão traduzir-se-ia numa câmara onde os deputados são eleitos em função da população e num senado onde cada estado, pequeno ou grande, tem igual número de representantes”. Assunto encerrado.

Permitam-me acrescentar que são excelentes ideias, que nos teriam beneficiado como portugueses e europeus. Não foi por acaso que com elas aceitei ser candidato independente pelo BE de outros tempos. Tal como recusei depois, como é público, os vários convites para ser candidato pelo PS em 2014, quando o PS de então se pôs na linha da frente do Tratado Orçamental. É que a coerência na matéria política mais importante do nosso tempo — a UE e o seu papel no mundo — não pode ser um luxo nem um capricho, mas antes a base de que se faz a nossa honestidade intelectual e a seriedade do nosso compromisso cívico. Por isso defendi e defendo sempre uma democracia europeia contra quaisquer derivas autoritárias, sejam tecnocráticas ou nacional-populistas. Em 2009 como em 2014 como hoje.

Não é, pois, a mim que o Bloco de sexta-feira à noite desmente. É a si próprio e à história do europeísmo de esquerda que agora lhe custa assumir ou que talvez simplesmente desconheça. Se os autores do comunicado desejarem continuar a conversa, terei aliás todo o prazer em apresentar-lhes mais propostas suas desse tempo, desde que o partido de hoje não tenha medo dos fantasmas do seu federalismo passado.

Para terminar: o mais bizarro deste bizarríssimo e desajeitado “desmentido” do BE é o que não está lá. É que na minha crónica eu fora muito duro com os partidos portugueses, e com o Bloco em particular, por terem poucas, nenhumas, ou más ideias sobre a União Europeia. Mas não foi isso que levou o Bloco a querer “desmentir-me”. O que é, convenhamos, extraordinário, mas revelador: quando digo que o Bloco tem hoje sobre a Europa uma posição caricatural e vazia, o Bloco não se dá ao trabalho de me contrariar, sabe-se lá se por não querer ou não poder. Quando digo que em tempos teve até excelentes ideias, sai célere para as redações um “desmentido”! Tudo menos ser visto, agora, a ter defendido — outrora — ideias europeístas.

Se assim é, aceitem um conselho: para a próxima vez que quiserem desmentir alguém tentem pelo menos não acabar confirmando com mais vigor ainda o que essa pessoa escreveu.

Sugerir correcção
Ler 27 comentários