Um ministro corajoso

Matos Fernandes tem revelado uma inequívoca qualidade: não hesita em enfrentar interesses corporativos.

Esta semana iniciou-se com a rocambolesca manifestação dos taxistas e haverá de terminar com a entrega da proposta do Orçamento do Estado para o próximo ano na Assembleia da República. Pelo meio, o país deu-se ao trabalho de acompanhar em directo a perseguição a um criminoso refugiado nas remotas florestas da zona centro.

Por circunstâncias ligadas à minha condição de parlamentar europeu, tive necessidade de me deslocar a Lisboa na passada segunda-feira. Tendo optado por utilizar a famigerada ponte aérea que a Administração da TAP criou com o intuito de reduzir o aeroporto Sá Carneiro ao estatuto de um simples apeadeiro aéreo, aterrei de súbito no meio do folclore daquilo que Manuel Carvalho designou há umas semanas como o “taxismo-leninismo” nacional.

Para chegar à Universidade Católica vi-me constrangido a utilizar um meio de transporte de que aliás não desgosto, e que uso amiúde em Bruxelas: o metro. Do que não estava à espera era de encontrar filas quase quilométricas, decerto agigantadas momentaneamente pelo efeito da greve dos táxis, para adquirir um simples bilhete.

Munido do aliciante troféu, e procurando ignorar o ambiente de insubordinação pública que se ia gerando à minha volta, consegui por fim alcançar o direito de entrar numa composição que, através dos subterrâneos da capital, me permitiu chegar com ligeiro atraso ao destino premeditado. Na Universidade Católica permanecia um ambiente de normalidade. Lá fiz o que tinha a fazer e de pronto dispus-me a enfrentar a aventura do regresso ao aeroporto, com o objectivo de apanhar o avião para Bruxelas.

Tudo decorreu de forma bastante satisfatória até ao momento em que me deparei com um elevador que praticamente não funcionava, vendo-me obrigado a utilizar um percurso que me permitiu dar de caras com o espectáculo de milhares de taxistas parados à volta do aeroporto de Lisboa. Havia de tudo: bandeiras e bandeirolas, carrinhas da polícia, homens e mulheres em estado de grande exaltação, turistas perplexos, nativos conformados, um imenso vozeio de imprecações contraditórias.

Um taxista, reconhecendo-me e identificando-me com o partido do governo, lançou-me os devidos impropérios, acusando-me de, sendo de esquerda, estar afinal ao serviço de uma grande empresa multinacional norte-americana. Ao lado, um colega seu, porventura mais atento aos particularismos da nossa vida política, lembrou-lhe que eu, apesar de socialista, não fazia parte da “corja” que apoiava o António Costa. Nesse momento, o meu instinto de militante impeliu-me a afirmar peremptoriamente que mau grado as divergências conhecidas também eu integrava essa denominada “corja”. O efeito de tal declaração foi o de ficarem ambos a discutir entre si sobre se eu na verdade fazia ou não fazia parte da tal “corja” enquanto me ia dirigindo para o interior do aeroporto.

Lá chegado, encontrei o meu amigo Miranda Calha, com quem tive oportunidade de trocar interessantíssimas opiniões acerca do estado em que se encontra o nosso país. Umas horas depois lá apanhei o avião, dediquei a viagem a ler um livro sobre o drama que apoquenta presentemente a Venezuela, e, chegado a Bruxelas, apanhei tranquilamente um táxi para casa. Como gosto sempre de conversar com os taxistas, e dada a experiência recente vivida em Lisboa, interroguei-o sobre os efeitos da presença da Uber na capital belga.

O taxista, de origem magrebina, começou por contestar uma concorrência a seu ver desleal e acabou a reconhecer a inevitabilidade de uma solução de compromisso, porquanto, nas suas próprias palavras, “o mundo anda para a frente, não anda para trás”. Chegado a casa a horas tardias ainda me dei ao trabalho de ler alguma coisa sobre a capacidade do capitalismo recuperar as novas formas da economia colaborativa. Apesar de tudo, confesso que foi um dia bem passado. Uma Lisboa com pouco trânsito exibia a sua irresistível beleza e as pessoas pareciam encarar a adversidade com um estado de espírito especialmente agradável. Ainda por cima voltei a andar no metro de Lisboa e a perceber a importância de uma boa rede de transportes públicos como condição essencial para a valorização da qualidade de vida de todos os cidadãos e em particular daqueles com menos recursos.

Tenho a obrigação de dizer que sou amigo do ministro do Ambiente, que o conheço há muitos anos e que já fomos assistir várias vezes juntos a jogos do Futebol Clube do Porto, do qual somos ambos fanaticamente adeptos. Feita esta declaração de interesses, sinto-me mais à vontade para manifestar o meu vigoroso apoio à forma como ele tem tratado esta questão da Uber versus Táxis. Contrariando, aliás, a minha perspectiva, no geral correcta, de que este governo carece de capacidade reformista, Matos Fernandes tem revelado uma inequívoca qualidade: não hesita em enfrentar interesses corporativos, nem sectarismos partidários, quando está em causa aquilo que ele considera a salvaguarda e a promoção do interesse público. Demonstrou-o quando enfrentou o PCP na questão da municipalização dos STCP, revelou-o na abordagem da delicada questão das demolições na ria Formosa e voltou a afirmá-lo no difícil confronto com as lideranças do associativismo dos táxis portugueses. O PCP não gostou, o Bloco de Esquerda não se entusiasmou e uma parte do PS está longe de se extasiar. Contudo, o ministro do Ambiente tem a meu ver razão.

O tema não é fácil e tem suscitado por esse mundo fora múltiplas reflexões. Jeremy Rifkin, um pensador norte-americano que adora a Europa, antecipa no sucesso da designada economia colaborativa o fim do modelo capitalista. Já Luc Ferry, filósofo francês que não abomina a América, preconiza que o recurso às novas plataformas digitais terá o efeito de revalorizar a economia na sua versão capitalista. Aquilo que começou por ser saudado como uma forma de partilha com uma forte componente de solidariedade entre os indivíduos está em vias de ser recuperado pelo pior do capitalismo transnacional sem regras e quase inteiramente desprovido de preocupações de ordem legal.

Esta polémica remete-nos para uma outra questão, bem mais complexa e profunda, que tem que ver com a natureza das relações interindividuais nas sociedades modernas e contemporâneas. Para uns, elas devem obedecer estritamente ao princípio da satisfação do interesse individual, remetendo para o nível da abstracção pura qualquer incidência de natureza social ou afectiva. Para outros, haverá que realçar a dimensão comunitária em grande parte constitutiva da própria esfera individual, atribuindo ao conceito da solidariedade um papel fundamental. O princípio da economia colaborativa assentava precisamente nesta ideia: a questão do lucro é secundária, o princípio da fraternidade é primordial. Na sua reformulação pelo modelo capitalista assiste-se a uma inversão total das prioridades: o lucro, seja o grande lucro das multinacionais envolvidas, seja o pequeno lucro do agente concretizador da acção ou do consumidor final, sobrepõe-se a qualquer lógica solidária.

Confesso que, aderindo racionalmente à posição adoptada pelo Governo, que me parece a mais correcta, não deixei de me sobressaltar um pouco com os textos a este respeito publicados por Daniel Oliveira e Francisco Louçã. No fundo acho que pragmaticamente Matos Fernandes tem razão. Contudo penso também que essa razão, que é a razão do decisor político, tem de ser sempre colocada em tensão com as inteligentes reflexões elaboradas por Louçã e Daniel Oliveira.

Há uma coisa em que quer eu, quer Matos Fernandes, quer Francisco Louçã e Daniel Oliveira estaremos certamente de acordo: a modernidade, para ser autêntica, tem muitas vezes de pôr em causa os gadgets “modernizantes”. Curiosamente, quatro homens que fazem parte de esquerdas bem diferentes talvez possam um dia estar de acordo em torno de posições que alguns não hesitarão em considerar conservadoras. É por isso mesmo que a coisa que mais me repugna na vida política é o sectarismo, venha ele da esquerda, venha ele da direita ou venha ele do centro. Sim, meu caro Francisco Louçã, por vezes os nossos desacordos não são assim tão profundos.

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