Um Governo negacionista

Que as autoridades executivas não tenham sido capazes ou não tenham querido ao menos divulgar a lista dos falecidos é da ordem do inacreditável.

1. Os últimos desenvolvimentos da tragédia de Pedrógão Grande, do caso do assalto de Tancos e da situação na Venezuela mostram que o Governo Costa entrou em estado de negação. António Costa terá pensado que o alheamento demonstrado pela “oportunidade” das suas férias, o decurso do debate do estado da nação e a entrada em recesso do Parlamento conduziriam ao esquecimento, ao esquecimento cívico, político e mediático. Mas, como seria fácil de antever, isso não sucedeu e o Governo entrou num lamentável modo de negação.

 2. As vicissitudes que se têm sucedido em torno dos funestos acontecimentos de Pedrógão Grande são absolutamente censuráveis. Indo ao mais imediato e material, é inexplicável a opacidade que se gerou sobre a ajuda financeira e material às vítimas do incêndio. Ninguém sabe quem gere as vultuosas verbas e ajudas resultantes da generosidade dos portugueses e dos apoios públicos e sociais. Ninguém tem ideia de que tipo de ajuda foi e está a ser distribuída e de como ela está a chegar. Aquilo que nos aparece, da parte do Governo, são visitas psicadélicas de Ministros. Não há nenhuma transparência, nenhum reporte, nenhuma comunicação sobre a situação no terreno. E entretanto a única notícia que emerge é denúncia séria e grave pela mão da associação de vítimas recentemente anunciada. Só isso e nada mais.

Muito mais grave ainda é a inexistência de uma lista completa das vítimas da tragédia, aí incluídas as vítimas “directas” e eventualmente, se as há, as “indirectas”. Desde cedo, critiquei veementemente e continuo a criticar a não organização pelo Governo de uma investigação independente, completa e célere – como seria mister em qualquer país civilizado. Se hoje existe alguma comissão a investigar, isso deve-se unicamente à pressão e à iniciativa do PSD; de outro modo, andaríamos ainda à boleia da inércia silenciadora do Governo. Agora que as autoridades executivas não tenham sido capazes ou não tenham querido ao menos divulgar a lista dos falecidos é da ordem do inacreditável. É mais uma vez a lei da rolha, mas desta feita numa matéria de uma delicadeza e sensibilidade humana que merecia um tratamento com um módico de dignidade e de respeito. O argumento sonso e manhoso, esgrimido por uma cada vez mais insustentável ministra da Administração Interna, de que se cura de domínio do segredo de justiça é totalmente improcedente. E é de resto inaceitável e incompreensível vindo de uma jurista com os pergaminhos que tem a ministra. Vamos a ver se nos entendemos: o óbito de alguém é um facto público, sujeito a registo. A morte de uma pessoa não é um facto da sua vida privada nem da esfera de privacidade da respectiva família: mesmo quando ocorre tranquila e pacificamente, é um facto sujeito à intervenção de autoridades públicas. Ponto final.

De resto, mesmo na investigação de um crime, a ocorrência de uma morte e a identidade da vítima não são matéria de segredo, são ao invés factos públicos. A causa da morte e as circunstâncias que a rodearam podem estar sujeitas a maior ou menor reserva por razões ligadas à investigação; mas isso não se aplica nem à morte nem à identidade da pessoa falecida. Que passado mais de um mês, até para futuramente cuidar da memória das vítimas, não haja uma lista pública e oficial, emitida pelo Governo, com o nome e o número de mortes é algo completamente insólito, irrazoável, da ordem do surreal. Algo que desonra e envergonha o Estado português diante das vítimas, das suas famílias e dos cidadãos em geral.

3. Esta atitude negacionista estende-se às tristes sequelas do assalto do paiol de Tancos. Já não bastava a intervenção atabalhoada e mal explicada do Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas sobre o valor do roubo e a putativa obsolescência do material, totalmente em contramão com tudo o que foi dito antes, mas em linha com o negacionismo que já vinha de trás quando se invocaram supostos paralelos internacionais. A nova nomeação dos oficiais que tinham sido – pasme-se! – exonerados “temporariamente”, feita sem qualquer explicação nem enquadramento, é mais um exemplo do desnorte, da opacidade e da desinformação que agora tomou conta das Forças Armadas. Pior só a as declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros, no seu bem conhecido estilo maniqueísta e capcioso, dizendo que não se pode pedir a demissão do Chefe de Estado Maior do Exército, porque não é assim que se lida com as Forças Armadas. Mais uma lei da rolha: um ministro que estabelece o que a oposição pode ou não dizer e fazer. Mas uma triste lei da rolha: as Forças Armadas e os seus comandantes, que todos respeitamos patrioticamente, ainda podem ser criticadas? Talvez o ministro se tenha esquecido: mas foi o CEME, quem contra tudo o que recomenda o recato, resolveu dar uma entrevista. Mais: nessa entrevista lançou a suspeita sobre os seus subordinados, sustentando que haveria cumplicidades internas no roubo em causa; foi ele que inventou a figura desconhecida da “exoneração temporária” e que acaba de a revogar. Um militar que, em vez de fazer comunicados, dá entrevistas; que, em vez de defender o prestígio da instituição, lança suspeições; que, demite e nomeia, sem dar conhecimento de nenhum inquérito, tem condições para se manter no seu posto de comando? E porque razão não podem responsáveis políticos e cidadãos em geral advogar a sua demissão? Que estado policial é esse em que diante de um comportamento errático, ligeiro e opaco de um chefe militar, não pode pugnar-se pelo seu afastamento? Negacionismo, não obrigado.

4. Uma última palavra para a Venezuela. O governo português está há muitos meses em estado de negação. O ministro só agora despertou e mesmo assim assobia para o lado. Podemos ter uma grave crise humana, com a necessidade de regresso urgente de dezenas de milhares de emigrantes portugueses. O Governo continua em negação, muito emulado pelos partidos que o sustentam na Assembleia. Fica o alerta.

SIM. Cavaco Silva. A medalha de ouro da Região da Galiza é o reconhecimento justo da obra de alguém que, no Governo e na Presidência, soube mudar o curso das relações luso-espanholas. 

NÃO. Donald Trump. A ponderação de exercício do perdão presidencial no quadro da questão das relações com o Governo russo durante a campanha eleitoral é, só por si, uma grave perversão constitucional.  

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