Um ano depois de eleito, Marcelo segue o estilo de Soares

Para António Vitorino, a tentação do chefe de Estado é “intervir para além da função presidencial”. Estrela Serrano vê nele, como no antigo Presidente, “a tentativa de condicionar o seu próprio partido à distância”.

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Marcelo com Soares numa homenagem póstuma a Maria Barroso, em Setembro do ano passado Presidência da República

Depois de uma campanha em estilo “Marcelo é fixe”, o Presidente da República passou um ano à Soares: a apoiar um Governo de minoria do principal partido opositor ao seu, a acumular popularidade como capital que poderá usar como entender no futuro e a apostar nas relações internacionais. E também a intervir activamente na política nacional, de uma forma que ora é claríssima, ora esconde uma agenda própria, mesmo em relação ao seu partido.

No mês do desaparecimento de Mário Soares, o Presidente em cujo estilo Marcelo Rebelo de Sousa assumidamente mais se inspira, a antiga assessora de imprensa do fundador do PS em Belém não tem dúvidas de que “Marcelo é o Presidente mais desafiador, depois de Soares”. Com muitas semelhanças, aponta Estrela Serrano, sobretudo na forma como “moldaram o regime semipresidencialista à sua personalidade”, aproveitando a conjuntura idêntica de existir um Governo de minoria de partido diferente do seu.

No momento em que assinala o primeiro aniversário da sua eleição, Marcelo comprovou, na primeira grande entrevista enquanto Presidente, que é um interveniente activo da actual solução política. Reconheceu, por exemplo, ter forçado o acordo de concertação social para o aumento do salário mínimo e ser um defensor da redução da Taxa Social Única como moeda de troca aos patrões. E puxou dos galões na “descrispação” do ambiente político, dando lastro (também fora de portas) à "geringonça" como solução governativa que, defendeu, deve durar uma legislatura.

Marcelo “não desistiu da tentação de intervir na vida política para além da função presidencial”, disse ao PÚBLICO António Vitorino, ainda antes daquela entrevista. “Ele tem imprimido um cunho mais presidencialista ao cargo sem sair dos poderes constitucionais, fazendo até um uso parco de instrumentos como o veto político e sabendo recuar face ao Governo quando é preciso”, acrescentou, recordando a forma como o Presidente deixou cair os contratos de associação, onde “recuou com prudência e habilidade”. Ver-se-á como vai sair da “curva apertada da TSU”, agora que empenhou a sua palavra na resolução do impasse.

António Vitorino, antigo discípulo de Marcelo na Faculdade de Direito de Lisboa, teve de negociar com ele a revisão constitucional de 1997, quando era ministro da Presidência de Guterres e o seu ex-orientador presidia ao PSD. Conhece-o muito bem e, mesmo assim, foi surpreendido pela forma como Marcelo conseguiu fazer a passagem do fato de comentador para o de Presidente: “A transmutação de comentador para Presidente sem se negar a si próprio era um exercício não isento de dificuldades, e ele conseguiu. Sem descaracterizar a sua vontade de falar sobre os assuntos. E fez essa ligação de forma autêntica e credível, o que é muito importante, porque não eram as características mais evidentes de Marcelo comentador”, analisa.

Esse é um dos dois sucessos que reconhece nesta primeira fase do mandato. O outro foi conseguir fazer o “reach the other camp”, apanhar o campo político que não era o seu eleitorado, ou seja, a esquerda. “Isso Cavaco nunca conseguiu, Sampaio conseguiu em parte, talvez o caso de maior sucesso seja o de Soares”, afirma. Mas alerta para a análise precoce: “Marcelo ainda não teve nenhuma crise séria, em que tivesse que cortar a direito. Mas fez a tal descrispação e com ela limitou algum conflito institucional. Esse é um sucesso deste primeiro ano”.

Um sucesso cuja evolução depende das vicissitudes políticas, e que só dura enquanto durar a actual conjuntura, acrescenta Estrela Serrano: “Este é um período de ouro para o Presidente, uma situação ideal, porque tem um Governo que não é do seu partido e pode sempre demarcar-se das suas opções – preservando a imagem e o seu eleitorado -, mas por outro lado não perde a oportunidade de segurar o Governo e de mostrar a afinidade que tem com António Costa”. E de assim exercer a sua “magistratura de influência” e se apresentar como “moderador e árbitro”, expressões que foi buscar ao legado de Soares.

Esta situação dificilmente se pode repetir no futuro, sobretudo se das próximas legislativas sair um Governo maioritário, pois as maiorias parlamentares esvaziam muito o Presidente. Certo é, segundo Estrela Serrano, que “alguma coisa se vai partir neste embevecimento que ele tem do país”, e isso pode acontecer antes do fim da legislatura, caso a “geringonça” falhe pelo caminho.

Tentação de telecomandar

Mas “Marcelo é especialista em cenários, já deve ter feito vários”, sublinha António Vitorino, lembrando que foi o próprio Presidente quem disse que “até às autárquicas não há brincadeiras”. Agora, na entrevista, esticou a estabilidade do ciclo político até ao fim da legislatura, tanto em relação ao Governo como às lideranças da oposição – leia-se do PSD, o único partido que tem a liderança questionada neste momento.

E esse é outro tabuleiro de xadrez a que Marcelo está particularmente atento. Estrela Serrano vê aqui outra semelhança entre Marcelo e Soares: “A tentativa de condicionar, orientar, o seu próprio partido à distância”. Vitorino não vai tão longe, mas não escamoteia que, “quando se é Presidente oriundo de um campo politico que está na oposição, a relação mais difícil é com o seu próprio campo político”.

Lembra que isso aconteceu com Soares, precisamente no início do primeiro mandato. Na altura, a liderança do PS acabou por ser conquistada por Vítor Constâncio, embora Soares preferisse Jaime Gama. “Constâncio teve muita dificuldade em afirmar-se até por causa do staff do Presidente, porque em Belém havia pessoas muito activas no PS”, lembra Serrano. Quando teve de decidir entre dar a maioria à esquerda sem eleições, como Constâncio pretendia, ou convocar eleições antecipadas para dar outra oportunidade a Cavaco Silva, Soares optou pela segunda e o PSD ganhou com maioria absoluta.

“Que o destino do PSD não é indiferente nem ao cidadão Marcelo Rebelo de Sousa nem ao Presidente, não é”, diz Vitorino com cautela. Mas depois dá um passo em frente: “Se o PSD não começa a construir uma alternativa, esse também começa a ser um problema do dr. Marcelo”.

Na entrevista, Marcelo foi claro quando disse que “é fundamental para o Presidente que a oposição seja muito forte. Porque se um [o Governo] não correr bem, tem de ter uma alternativa”. Historicamente nunca um Presidente dissolveu o Parlamento e foi desautorizado pelo eleitorado, no sentido de manter tudo na mesma. Marcelo também não o fará sem ter a certeza de que existe uma alternativa, ou pelo menos uma solução no PSD que permita um Governo ao centro. É isso que falta a Marcelo para ser verdadeiramente o moderador que Soares preconizou mas também não conseguiu ser. Como diz Estrela Serrano: “Conseguir pôr o PS e o PSD de acordo, que é talvez o sonho dele”.

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