Uivar com os lobos?

Eu não uivo com os lobos, porque os conheço e porque sei do que são capazes – e porque a democracia detesta o processo sumário e o jogo sujo.

A João Miguel Tavares falta ser original, mas resolveu juntar-se a um coro de indignados que me invectiva (e a outros) por não bramar pela destituição de Dilma Roussef. Cheio de fofuras, ele quer ter um poster da Mariana à porta do quarto, ele leu os meus livros, ele adora tudo, mas agora indignou-se porque acha que eu acho que “afinal, existe uma corrupção de direita e uma corrupção de esquerda”. O argumento é tão tristonho que não precisaria de resposta, não fora ser sinal reincidente de uma direita que mostra que entende a democracia de modo instrumental.

Há aqui três discussões. A primeira é a do populismo: a presidente não é acusada de qualquer crime, não importa, bota fora. Um juiz viola a lei, mas ele tem uma missão superior. Um presidente no Brasil só pode ser demitido se se provar que cometeu pessoalmente um crime previsto no artigo 85º da Constituição e na Lei 1.079/1950, mas não cuide disso, bota fora. O argumento é este: se há fumo é porque há fogo, bota fora. É o desvario do populismo: basta um juiz falar para a condenação estar feita, mesmo sem acusação nem julgamento. Esqueceu-se do Direito, caro Tavares?

A segunda é a da política. Os juízes angelicais que descem com a espada de fogo para aniquilarem o mal seriam belos, se fossem legais. Ora, não havendo processo jurídico que fundamente a demissão, tudo é política. E suja: a queixa do PSDB, o partido de direita que iniciou o processo (e que perdeu as eleições) baseia-se no parecer do conselheiro do Tribunal de Contas, João Nardes, um ex-deputado do Partido Progressista, que aliás chegou a ser aliado do PT e agora faz parte da frente derrubista, em que acusa a presidente de má gestão orçamental em 2014, ou seja, no mandato anterior. Ora, Nardes é bem conhecido da justiça, dado que foi registado pela “Operação Zelotes”, que investiga a venda de perdões fiscais, tendo sido descoberta uma sua empresa que terá recebido dois milhões de reais para reduzir o pagamento de impostos do Grupo RBS. Para acrescentar um pouco do colorido, o ex-presidente do PP, Pedro Correa, testemunha que Nardes recebia regularmente luvas e indica os valores. É mesmo nisto que se quer meter, caro Tavares?

Eduardo Cunha, o presidente do parlamento, que conduz o impeachment, recebeu mais de 52 milhões de reais da Petrobrás e as suas contas na Suíça já foram identificadas. A maioria dos deputados que julgam a presidente (352 dos 594 deputados) tem um acusação por suspeitas de corrupção ou outros crimes – Dilma não tem. A demissão, que ocorrerá dentro de três semanas, é por isso a corrida do deputado aflito para se safar. É isto que quer, caro Tavares?

A terceira é a da luta contra a corrupção. Não sei se Tavares conseguirá convencer alguém de que gritar pelo bota-fora é a atitude digna. Ele procura aliás seduzir-me, queixando-se de que tínhamos “uma plataforma mínima de entendimento e que poderíamos encontrar-nos na rua e concordar sobre Ricardo Salgado, José Sócrates ou Lula da Silva” – todos ladrões. O problema é que não concordamos, caro Tavares. Salgado, que eu saiba, não foi acusado de roubar, veremos o que diz o processo. Sócrates não tem acusação e vai para ano e meio; aquelas coisas no Correio da Manhã não se qualificam para o efeito. E Lula não foi acusado. Portanto, se Tavares deixasse de lado os ódios pessoais que tão mal o colocam, seria um tudo nada mais sensato e discutiria política, banca e outras malfeitorias sem ter que gritar contra toda a gente de que não gosta que “é corrupto”.

Ora, não há “corrupção de esquerda e corrupção de direita”, porque crime é crime. Até lhe digo mais, caro Tavares, para o aliviar da sua angústia: eu só ponho as mãos no fogo por pessoas que conheço muito bem. O que conheço do PT, ao contrário, é o Mensalão, que condeno, ou a compra de favores, que detesto, e espero que todos os responsáveis respondam perante a justiça. Mas é perante a justiça, entende, Tavares? Não é perante juiz que faz parte do partido oposto, ou perante sentença transitada em julgado nos editoriais do Globo, porque isso seria o mesmo que entregar a presidência do nosso Supremo Tribunal de Justiça a um Octávio Ribeiro. E para isso não conta comigo.

Finalmente, Tavares não vê “ódio de classe” neste assunto, só sente elegância. Suponho que não ouviu há dois dias um exaltado deputado brasileiro, nas escadarias da Faculdade de Direito de Lisboa, a prometer que “sindicalista vai ver como é”, ou que não viu a fogueira de efígies de sindicalistas na Avenida Paulista. Eu vi. E não me esqueço, porque estive no Brasil quando a ditadura militar ainda condenava amigos meus, quando a imprensa procurava furar a censura e quando os sindicalistas eram presos.

Eu não uivo com os lobos, porque os conheço e porque sei do que são capazes – e porque a democracia detesta o processo sumário e o jogo sujo.

Ex-líder do Bloco de Esquerda

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