Tirem a Caixa ao ministro

Bem pode o ministro fazer comunicados apologéticos que o resultado da negociação com Frankfurt é o que está à vista de todos. É uma vergonha para o país.

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Finanças, uma equipa debaixo de fogo Daniel Rocha/Arquivo

Já depois da hora de jantar da última quarta-feira, um comunicado delicodoce chegou de surpresa à redacção do PÚBLICO. Tinha a assinatura do Ministério das Finanças, adoptava por título “Modelo de governação e de administração da CGD aprovado pelo BCE” e estreava o texto garantindo pomposamente que o Banco Central Europeu (BCE) tinha “decidido, favoravelmente, a proposta de nomeação dos corpos sociais da Caixa Geral de Depósitos (CGD)”. Uma mistificação, bem se sabe. A estratégia de plantar a notícia já perto da hora de fecho dos jornais havia de ter algo a ver com a ideia de transformar uma cedência numa vitória, de colorir uma humilhação com os tons simpáticos de uma derrota. Houve jornais que caíram na armadilha e houve jornais que trataram o caso com suspeição, mas bastaram 24 horas para que a tentativa de branqueamento do Ministério das Finanças na sua péssima gestão do dossier Caixa ruísse como um castelo de cartas.

Percebeu-se então que o alegado beneplácito de Frankfurt à proposta do Governo se limitara a algumas cedências temporárias, a raspanetes com o timbre da soberba e a gestos de impaciência. António Domingues vai acumular a presidência do Conselho de Administração e da Comissão Executiva durante seis meses e depois logo se verá; três dos administradores indicados vão ser obrigados a frequentar um curso de gestão bancária (será que se sujeitam ao vexame?); no futuro terá de haver mulheres na administração; e, suprema vergonha para o país, o BCE recusou indicar para administradores não-executivos personalidades que desempenhavam funções em outras empresas, o que viola o Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras, uma lei da República Portuguesa.

A aprovação condicionada, e temperada com uma boa dose de vexame, do BCE à proposta de Mário Centeno é um bom testemunho da impaciência e até da irritação com que o regulador europeu assiste à degradação da imagem do banco público durante este Governo. Se o Banif e outras trapalhadas que caíram no colo da equipa de António Costa resultam da irresponsabilidade e da propensão do anterior Governo para varrer o lixo para debaixo do tapete, a história da Caixa é toda ela um filme negro com argumento, realização e fotografia de Mário Centeno e da sua equipa. Um filme que deixou a Caixa sem gestão estratégica num momento em que se conhecem as suas necessidades de capital. Que a tornou vulnerável a fugas de depósitos. Que lhe custou à perda de clientes.

Depois de meses de costas voltadas para a anterior administração (será por ser próxima do seu alegado ódio de estimação, Carlos Costa, governador do Banco de Portugal?), depois de tudo fazer para a denegrir em público, depois de hesitar, tergiversar e tropeçar, Centeno caiu nas mãos de um gestor exigente que o colocou na situação de refém. António Domingues quis salários mais altos, quis acumular na sua pessoa poderes de chairman e de CEO, quis uma equipa mais alargada, quis afinal uma série de títulos que dificilmente passariam pelo crivo das regras da boa governação adoptadas pelo Banco Central Europeu. Para as contornar, o Governo gastou meses intermináveis. Agora que a anterior administração ameaçava deixar de vez a Caixa à deriva, algo tinha de ser feito. E algo se fez. Bem pode o ministro fazer comunicados apologéticos que o resultado da negociação com Frankfurt é o que está à vista de todos. É uma vergonha para o país. E uma vergonha ainda maior para o ministro que manda nas Finanças.  

2 - Há declarações políticas que nos obrigam a reclinar na cadeira, a respirar fundo e a pedir um copo de água e um Guronsan. Como esta: "Esperamos que o que seja preciso e o que é difícil seja menos do que aquilo que podemos fazer porque podemos fazer mais do que aquilo que é difícil, podemos também fazer o que é necessário". Não, quem a proferiu não foi um devedor aflito a dar explicações ao banco nem um homem nervoso a tentar resolver um problema conjugal. A frase, ou melhor, o arrazoado, é da autoria de Pedro Passos Coelho e foi largada aos atónitos militantes e simpatizantes do PSD que foram à festa do Pontal como quem vai à missa em busca de iluminação para o futuro do partido. Nos dias seguintes, não faltou quem sugerisse ao líder da oposição que começasse a escrever os seus discursos, como João Miguel Tavares, quem voltasse a garantir que Passos está obcecado com o passado, ou quem, como Mariana Mortágua, notasse que o ex-primeiro-ministro jamais conseguirá respirar sem teoria do “apocalipse”. O discurso de Passos, é certo, é um horror literário e um pavor semântico, mas, como síntese de um programa é de altíssimo gabarito.

Se pegarmos na parte final desta frase (“porque podemos fazer mais do que aquilo que é difícil, podemos também fazer o que é necessário") ficamos de imediato a perceber que o que é “necessário” não é obrigatoriamente “difícil” e que há-de haver decisões políticas difíceis que podem até nem ser necessárias. Neste emaranhado de ideias torrado pelo sol e pela lassidão das férias esconde-se uma faceta importante do Pedro Passos Coelho profundo. Ele vê-se como um Messias numa luta titânica contra o destino do país. Ele está convencido de que Portugal precisa de tomar medidas difíceis, sejam ou não necessárias. Ele tornou-se o arauto da expiação dos pecados pela penitência. Ele diz esperar que “o que seja preciso e o que é difícil seja menos do que aquilo que podemos fazer” e para se chegar lá o Portugal “piegas”, o que se acomoda na crise e não emigra, o Portugal que se encosta nos apoios sociais tem de ser erradicado. Passos, goste-se ou não, tem um programa claro de ruptura na cabeça - embora não o tivesse aplicado quando teve oportunidade.

O seu problema, o problema do PSD, está no diabo da realidade que anda há quase um ano a mostrar que o país não se afunda, apesar de toda esta “política de fingimento, superficialidade e ligeireza, que empurra com a barriga e logo se vê”. O povo não é parvo e enquanto houver bife ninguém estará disposto a comer miúdos. Mas se um dia o bife desaparecer, se, novamente encostado entre a espada e a parede tiver de aceitar medidas difíceis, sejam ou não necessárias, então Passos estará na primeira linha do combate munido com a razão de Pedro na história do lobo que um dia acabou mesmo por vir. Não deixará de ser trágico: quando alguém se torna útil ou querido por associação à desgraça, dificilmente esse alguém será simpático.

3 - A economia só cresceu 0,2% no segundo trimestre, a única agência que garante uma notação positiva à dívida pública anda nervosa com o estado da economia, o indicador de actividade económica voltou a cair em Junho e as contas externas de Portugal atingiram um défice no primeiro semestre quase 20 vezes superior ao do mesmo período do ano passado. Coloquemos o cinto de segurança: vem aí um segundo semestre terrível.

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