Tantos Soares

Porque é que de um dos homens que menos consensos conseguiu reunir na história contemporânea portuguesa se fixa hoje uma memória muito mais carregada de elogios que de censuras?

Há um Soares para (quase) todos os gostos. Habituados a tê-lo em algum lugar das nossas vidas e memórias, dele guardamos uma memória humana que se tem sintetizado nessa imagem de homem bem-disposto, vital e corajoso de quem é possível recordar-se todos os contraditórios (tolerante e rancoroso, amistoso e duro, leal e oportunista). O que dele se disse nestas duas semanas é, sobretudo, revelador de como se lê o presente (a legitimidade/necessidade dos acordos à esquerda ou o posicionamento face à UE) e de como se explica o passado (a resistência à ditadura, a Revolução e a descolonização, a integração europeia, os governos e as presidências Soares, o cavaquismo, o desmantelamento do legado revolucionário). É inevitável lembrarmo-nos do passado em função do que achamos ser o presente em que vivemos. As nossas memórias, mais do que simples narrativas do passado, têm muito de explicação ou justificação do mundo em que vivemos e tendem a obedecer à nossa particular visão de como o passado construiu o momento em que recordamos.

Porque é que de um dos homens que menos consensos conseguiu reunir na história contemporânea portuguesa se fixa hoje uma memória muito mais carregada de elogios que de censuras? Porque Soares assegurou para si um posicionamento central (político e simbólico) em tempos de mudança tão intensa quanto foram os anos de crise da ditadura, os da Revolução, os da integração europeia e reconfiguração da economia e sociedade portuguesas no final do séc. XX. É o que tem sido descrito como a sua "intuição"; os mais exagerados descrevem-no como ter tido "sempre razão". Como Cunhal, Soares comprometeu a sua vida na resistência à ditadura (tinha 49 anos no 25 de Abril) e, quando a possibilidade de alguma cooptação lhe foi entreaberta por Marcelo, rejeitou-a, ao contrário de Sá Carneiro, que, depois de ter servido de flor da lapela do marcelismo, só aos 36 anos se arriscou a começar a criticá-la; Freitas do Amaral nem isso. Enquanto achou que o marcelismo poderia dar frutos, Soares rompeu a unidade da oposição e criou a CEUD; quando percebeu que o regime estava para cair, procurou convergir com o PCP.

O Soares que hoje se descreve como o herói que teria impedido a "ditadura comunista" que Cunhal teria planeado para Portugal (a mais perdurável "inventona" - uma palavra cara a Soares em 1975 - que sobre a Revolução se costuma contar) esteve com Cunhal contra Spínola (e Sá Carneiro) na descolonização (e a direita nunca lho perdoou) e, de novo, na aprovação da Constituição de 1976, descrita desde então como "marxista" e "coletivista", depois de ter estado contra Cunhal ao longo de 1975.

Desde então e até 1991, coincidiu com a direita quase sempre (governos com CDS e PSD, FMI, revisões constitucionais, austeridade...). No 25 de Novembro esteve com os Nove e Eanes, que lançará à Presidência; em 1980 rompeu com Eanes, quando se jogava tudo por tudo contra Soares Carneiro, e em 1982 abandonou os Nove dissolvendo o Conselho da Revolução. As presidenciais de 1986 são uma boa síntese desta centralidade: a 1ª volta contra a esquerda ("a Marinha Grande não é de Moscovo"), a 2ª contra Freitas, com o apoio do PCP.

O mesmo se poderia dizer dos dois mandatos presidenciais: no primeiro, recusa uma alternativa PS/PRD, oferecendo a Cavaco a dissolução da Assembleia e a possibilidade de uma maioria absoluta; no segundo, depois de conseguir o apoio de Cavaco para ser reeleito, enfrenta-o desde então. Aquele que é descrito como um europeísta de sempre achava em 1973 que a "Comunidade Europeia é uma criação do patronato multinacional" (Declaração de Princípios do PS); na Revolução percebeu que ela poderia ser o motor da mudança económica que ajudaria decisivamente a eliminar o modelo económico que ele próprio votou na Constituição; e nos últimos anos mostrou-se muito crítico do neoliberalismo de Bruxelas. Da mesma forma, o atlantista ferrenho dos anos 70 e 80, que em 1989 quase se deixou convencer pela tese do Fim da História, entrou neste século como crítico desabrido da politica internacional americana.

Muitos Soares guarda a memória. Tantos quantos aqueles que fizeram o nosso regime democrático como ele é.

Historiador

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