Também se aprende a ser deputado: três debutantes no Parlamento

Embora à luz da Constituição a sessão legislativa só termine a 15 de Setembro, é já nesta quarta-feira que acontece o último plenário da sessão na Assembleia na República. Três deputados eleitos pela primeira vez nas últimas legislativas contam como foi.

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Domicília Costa, de 70 anos, foi eleita pelo Bloco de Esquerda. Viveu durante anos na clandestinidade Nuno Ferreira Santos

Assim que vê que um dos assessores do Bloco de Esquerda se vai embora, deixando-a com dois jornalistas na sala da vice-presidência da Assembleia da República (AR), a deputada Domicília Costa exclama: “Não me deixes aqui! Olha que depois não sei voltar!”. A própria ri-se e acrescenta, divertida, que “acabaria por lá chegar”, à sala do grupo parlamentar do Bloco, mas o receio não é descabido. Conhecer os corredores e os meandros do Parlamento pode levar o seu tempo.

E Domicília Costa, 70 anos, cabelo grisalho, óculos, vestido às flores e ténis – para andar confortável – é uma mulher bem despachada. A política faz parte da sua vida desde sempre, passou grande parte dela na clandestinidade. Já muito se escreveu sobre a entrada desta deputada na AR, depois dos resultados inesperados do BE nas últimas legislativas que transformaram o partido na terceira força política do país.

Domicília Costa não contava ser eleita como independente nas listas do BE, mas foi e, assim sendo, lá se meteu a caminho, de Gaia para Lisboa. Mas aterrar no Parlamento pode ter que se lhe diga. Os corredores parecem labirínticos, os procedimentos administrativos complicados, é todo um mundo novo que é preciso dominar.

“Houve um período de adaptação, as coisas não são fáceis. Tudo tem de se aprender, ninguém nasce a saber andar. E isto também tem de se aprender. Vai-se aprendendo à medida que se fazendo.”

Tudo foi novo para quem entrou para o Parlamento depois das últimas eleições, num momento político particularmente polarizado em Portugal, em que acabou por se derrubar um Governo de direita e dar posse a um executivo socialista apoiado pelos partidos à esquerda. Foram feitos acordos inéditos entre PS, BE, PCP, e Verdes.

Foi, ou é ainda, tudo tão novo que o deputado social-democrata Álvaro Batista, bem-disposto, assume sem complexos que esta é a primeira entrevista que dá a um órgão de comunicação nacional. Até agora só o tinha feito com órgãos regionais.

Ter uma vida de alguma forma ligada à política não foi novidade para nenhum dos três deputados ouvidos pelo PÚBLICO. No caso de Domicília Costa, passou uma vida na clandestinidade, foi militante do PCP. Álvaro Batista teve vários cargos a nível local, ainda tem. Ana Mesquita, do PCP, sempre participou activamente como podia na vida política e associativa, da escola à faculdade em Coimbra onde chegou a colaborar numa direcção-geral da Associação Académica e discursou várias vezes em assembleias magnas.

De fato e gravata, Álvaro Batista, 56 anos, advogado – vai agora poucas vezes ao escritório, mas defende que o cargo de deputado não é incompatível com a advocacia - é também membro da Assembleia Municipal de Castelo Branco. Ainda assim, entrar no Palácio de São Bento foi diferente: “A política sempre foi uma coisa que fiz ao longo dos últimos anos. Ser deputado, no princípio, era quase uma espécie de sonho. Depois passou a estar ao meu alcance e, finalmente, consegui concretizar.” Fez várias intervenções em plenário e debruçou-se, entre outras, sobre questões como as 35 horas de trabalho, a utilização ou não do glifosato.

Todos falaram no plenário, algumas vezes no púlpito. E todos sentiram uma grande reviravolta na vida pessoal. Agora, sobra menos tempo. Para Álvaro Batista, por exemplo, só a diferença entre Castelo Branco e Lisboa é, só por si, grande: “Lá, em Castelo Branco, os dias são maiores, temos mais tempo, não perdemos tanto tempo em transportes, as coisas ficam perto umas das outras.”

Sair dos corredores da AR

De sapatilhas All Star vermelhas e uma saia com caveiras, Ana Mesquita tem uns longos cabelos castanhos-escuros, com uma bandelete, e sorri muitas vezes, enquanto fala sobre política, sobre o que fez no Parlamento, sobre o que mudou na sua vida. Tem 37 anos, militância comunista desde o início da adolescência. É arqueóloga, mas está em regime de exclusividade.

Não tem dúvidas de que aterrou no Parlamento num “contexto muito particular, de uma alteração grande em termos da correlação de forças na AR”. Isso tornou tudo ainda mais intenso, vai dizendo, com um “ritmo dos trabalhos muito acelerado”.

“Para quem chega de novo é um desafio, porque ainda nos estamos a ambientar aos dossiers, aos temas, a tudo o que temos de conhecer que não é de pouca monta”, diz Ana Mesquita que não esconde o entusiasmo por ter participado na ruptura com aquilo que os comunistas consideravam “um rumo desastroso para o país” – a política do anterior Governo PSD/CDS.

Como boa memória desta sessão legislativa guarda a aprovação de um projecto de lei do PCP sobre o fim do abate nos canis (uma das comissões que Ana Mesquita integra é a do Ambiente, Ordenamento do Território e Poder Local). “Fiz a discussão em plenário, fiz o processo de especialidades, de trabalho, do princípio ao fim, foi com muito gosto que o vi ser aprovado.” Para isso, fez várias visitas a canis, andou pelo país, saiu dos corredores do Parlamento.

Tal como Domicília Costa, também Ana Mesquita recorda a sensação de labirinto que teve no primeiro dia em que chegou ao Palácio de São Bento, que já conhecia do lado de fora, de muitas manifestações: “Os corredores parecem todos mais ou menos iguais. Depois a ambientação ao trabalho, aos procedimentos, aos ritmos, isso continua a ser exigente. O esforço de adaptação é permanente”, resume a comunista que vive em Almada, tem um filho de 19 meses e também viu o tempo encolher com as novas funções. Em casa lá se consegue articular com o companheiro, mas deixou, por exemplo, de praticar de desporto, futebol, como fazia.

Domicília Costa também virou a vida do avesso, apesar de continuar a ir, nalguns fins-de-semana, ao Norte. Também gosta de sair dos corredores do Parlamento e foi a seu pedido que foi visitar um lar e o Estabelecimento Prisional de Tires. “Durante anos, por motivos diferentes, também corri o risco de também ser presa. Conheci diversas camaradas minhas que estiveram presas com crianças ou que tiveram as crianças já na prisão. Creio que esse meu interesse vem daí”, recorda.

São áreas que a preocupam. Participou, por exemplo, na elaboração de um projecto de resolução que recomenda ao Governo a realização de um estudo e de um manual de boas práticas para os lares de idosos, o reforço da fiscalização por parte da Segurança Social e das respostas públicas ao nível dos cuidados continuados e do apoio domiciliário a idosos.

O ritmo de vida de Domicília Costa – que não gosta do termo “doméstica” para designar o que fazia antes, porque não descreve verdadeiramente o seu percurso – é agora mais intenso, mas também “mais rico”. É a própria quem o diz e acrescenta, em jeito de balanço, agora que se aproxima o final da primeira sessão legislativa: “Nós damos o melhor que podemos. Ou pelo menos devemos fazê-lo.”

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