Sobre a vergonha do patriotismo (e também o mito do pântano)

Estranho país seria este, se não celebrasse quando chega ao centro do mundo. Sim, falo de António Guterres.

Uma pergunta: o que é que acontece quando a selecção nacional de futebol ganha o Campeonato da Europa? Celebramos, pois claro. Eu fiz o mesmo e vivi o abraço colectivo. Não importavam as cores, muito menos as partidárias. Não importavam as crenças, as origens, os gostos. Os jornais, as rádios, as televisões desenharam capas lindas, títulos heróicos, marcando a data como um novo feriado nacional.

Esta quarta-feira, que nem por acaso era feriado nacional, outro português que não Éder ou Ronaldo chegou ao topo do mundo. Talvez sem a pretensão de deixar um país parado, feliz por uns dias, mas neste caso com a missão extraordinária de conciliar povos, de negociar a paz, de encaminhar refugiados, de regular as políticas que nos deixam mais desiguais, mais afastados, mais longe uns dos outros. Nesse dia, porém, era estranhamente mais difícil celebrar — à excepção dos que participaram nos protestos no Rato contra o antigo regime, militam no PS ou fizeram parte de um governo constitucional, especificamente entre finais de 1995 e 2001.

Ontem, aqui nestas páginas, o João Miguel Tavares provocou com a graça de sempre, dizendo estranhar outra coisa: que se vangloriasse a vitória de Guterres como a da selecção nacional, deixando depois de parte outros portugueses que também vencem. Tendo a discordar em 50%. É verdade que vemos critérios diferentes, consoante as simpatias — mas isso é apenas humano. Mas a verdade é que não senti uma onda de patriotismo na vitória de António Guterres, até uma certa inibição em fazê-lo.

Há, nessa vergonha, um engulho que me incomoda: parece-me indiscutível que a eleição de Guterres é muito mais importante para o nosso posicionamento no mundo do que uma vitória no Europeu. Como diz a Teresa de Sousa, aqui pela redacção, isto não é ser patrioteiro — é mesmo ser patriótico, sem qualquer embaraço por isso.

Agora vamos lá à questão pessoal. António Guterres foi primeiro-ministro de Portugal durante seis anos. Deixou marcas, umas boas e outras más — como terá acontecido com qualquer chefe de Governo, incluindo Santana Lopes, que só lá esteve seis meses.

Era capaz de fazer uma crónica inteira a falar dessas marcas, mas, no caso de Guterres, há uns exemplos fáceis de citar. Entre os melhores, a introdução do ensino público pré-primário, até ali quase inexistente; a introdução do rendimento mínimo (entretanto melhorado, como deve ser). Entre as piores conto a ilusão de um crescimento permanente, que deitou abaixo as contas do Estado e limpou qualquer desejo de mudança em áreas tão críticas quanto a Segurança Social e a Saúde — para não dizer que iludiu todos sobre a nossa verdadeira capacidade competitiva.

Mas, à distância destes 15 anos, e já passaram 15 anos desde que António Guterres saiu da política, solidificou-se na memória colectiva um mito à sua volta que tem muito de injusto: o do homem que abandonou o país, deixando-o num pântano.

A verdade é que... não é verdade. Eu estava naquela sala do Largo do Rato quando António Guterres se demitiu. E lembro-me bem do contexto político muito específico que vivíamos naquela altura. Guterres seguiu-se a Cavaco Silva, em 1995, com uma minoria dos deputados na Assembleia da República. E assim conseguiu governar durante os primeiros quatro anos, em boa parte porque o líder da oposição se chamava Marcelo Rebelo de Sousa. Na segunda legislatura, porém, ficou a um deputado de uma maioria — que era a única maneira que tinha de segurar um Governo.

Durante dois anos, tudo aquilo foi um sacrifício. A economia já não estava bem, a entrada no euro tornou a vida real das empresas mais dura. E, no Parlamento, só um deputado do CDS permitia navegar à vista. Foi por isto que Guterres saiu. Depois de uma enorme derrota nas autárquicas, a sua força política era zero. Ficar significava um país em stand-by. Por tudo isto, Guterres fez bem em sair. O que ficou para trás tem culpas dele (pelas quais já pediu desculpa). O que aconteceu depois, não.

Por isso, e porque o Guterres de ontem nem é o Guterres de hoje (é maior, mais experiente, mais forte), não tenho o menor pudor em celebrar a sua eleição para secretário-geral da ONU. Terei orgulho em cada pequena vitória que conseguir, da mesma maneira que sofrerei por cada vitória que não conseguir. Guterres, que conheço mal, é obviamente um dos nossos melhores — porque nenhum dos nossos piores chegaria onde ele chegou. E fará o seu melhor para nos fazer parecer bem, para fazer deste mundo um sítio mais são. Por isso, sai daqui um aplauso para ele. E um desejo de muita sorte. Sem vergonha.

 

 

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