Sobre a amnésia da direita

Infelizmente, o imobilismo neoliberal gerou um assustador e indesejável subproduto: uma cidadania despolitizada.

1. Sem passado, não há presente nem futuro, e o passado mais próximo que tivemos foi o do governo de direita chefiado por Pedro Passos Coelho (PPC) acolitado por Paulo Portas (PP). A comando da troika, e para além dela, os chefes da coligação entre PPD/PSD e CDS/PP decidiram empobrecer deliberadamente os portugueses durante mais de quatro anos. E não foi coisa que boa de se ver, tantos foram os sacrifícios brutais impostos às classes populares e a boa parte das classes médias, em benefício exclusivo dos mais ricos e poderosos.

Como alguns se lembrarão, não têm conta as falsas promessas proferidas por PPC para conseguir ganhar as eleições e alcançar o poder – onde, aliás, continuou a mentir sistematicamente. Lembramo-nos de muitas das suas falsas promessas. Mas há uma, proferida por PPC quando já estava no poder, que constitui como que uma “marca de fábrica” deste político amoral e sem escrúpulos.

No dia 5 de Abril de 2011, PPC fez uma extraordinária afirmação – hoje certamente esquecida – reveladora da sua incapacidade e incompetência políticas. Numa das suas habituais sessões de ilusionismo político, neste caso no chamado Clube dos Pensadores, disse PPC: “É decisivo um crescimento económico de pelo menos 3 a 3,5% nos próximos dois ou três anos, ou então a austeridade não valeu de nada”. Referia-se aos anos de 2012, 2013 e 2014. Ora, chegados a 2015 com uma baixíssima taxa de crescimento, a conclusão que então se impunha era óbvia: “a austeridade não valeu de nada”, segundo as palavras do próprio PPC.

É certo que, hoje, as notícias sobre o crescimento continuam a não ser boas. Mas é no mínimo escandaloso que PPC, para criticar o actual Governo, se tenha esquecido do seu monumental fracasso, ao ficar bem longe do crescimento prometido por ele próprio em 2011 – os tais 3 a 3,5%, nos três anos seguintes – sem o qual nunca haveria (e não houve!) “pacotes de austeridade” que lhe valessem e nos valessem. E não foram poucos os “pacotes de austeridade” que flagelaram sem piedade as populações, aumentando a pobreza e encolhendo o país.

2. Um dos argumentos mais aviltantes recorrentemente utilizados pela direita ultra-liberal e reaccionária, frustrada por já não exercer o poder, é o de que os pobres e os remediados – impiedosamente sacrificados pelos “pacotes de austeridade” – querem agora passar a viver à tripa-forra.

Que vergonha! Quem vive à tripa-forra e beneficiou imenso com a austeridade e os sacrifícios impostos aos trabalhadores pelo governo de direita, foram os ricos e poderosos, os grandes empresários, os plutocratas e os “tecnocratas sem pátria” (ou “apátridas”, como lhes chamava De Gaulle) ao serviço do capital financeiro.

Esta gente constitui um poder não democrático (e por isso ilegítimo) difícil de conter e erradicar – que existe não apenas em Portugal mas também na União Europeia, no Banco Central Europeu, no Fundo Monetário Internacional e nas outras instâncias internacionais que comandam a globalização.

Convém lembrar que, nos quatro anos do governo de direita, o emprego caiu a pique; foram destruídos cerca de 400 mil postos de trabalho; o desemprego cresceu; os salários diminuíram; a precariedade aumentou; os direitos dos trabalhadores e dos desempregados encolheram.

PPC insiste em afirmar que o seu governo andou a “pagar as dívidas dos outros”, mas o certo é que, com o governo PPD/PSD-CDS/PP, a dívida do país chegou aos 290 mil milhões de euros em Julho de 2015. Representava cerca de 90% do PIB quando a direita chegou ao poder. Passou a representar cerca de 130% do PIB quatro anos depois, tendo aumentado 106 mil milhões de euros.

Com a direita no poder, Portugal passou a ter uma das maiores desigualdades sociais da União Europeia e uma das maiores taxas de pobreza da OCDE. Mais: Portugal encolheu, tornando-se o quinto país do mundo em que a população mais decresceu durante 2014. Segundo o Banco Mundial, só Porto Rico, Letónia, Lituânia e Grécia tiveram um declínio populacional maior. Durante quatro anos, a emigração de portugueses foi mais elevada do que na década de 1960 (marcada pela ditadura de Salazar e pela guerra colonial), mas agora passando a emigrar tanto os menos como os mais qualificados. Em quatro anos, emigraram quase 500 mil portugueses.

3. Seguindo a agenda e a doutrina neoliberal dominantes, o governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas submeteu-se completamente aos ditames da Comissão Europeia, do FMI e do governo alemão; impôs o domínio do capital financeiro sobre a economia (em cerca de seis anos, os bancos portugueses beneficiaram de apoios do Estado num montante superior a 36 mil milhões de euros); instaurou a concorrência sem freios em quase todos os domínios, por via da desregulação, das privatizações, dos ataques ao Estado Social (SNS, escola pública, Segurança Social), dos cortes brutais nos salários, pensões e prestações sociais de todo o tipo; e aprovou políticas fiscais em escandaloso benefício das grandes empresas e dos plutocratas.

O objectivo prosseguido por PPC e PP foi o de reforçar o poder das elites económicas dominantes, recorrendo ao poder do Estado para proteger e defender os interesses dessas elites e criar um ambiente institucional e um clima favoráveis ao lucro.  O seu projecto de redistribuição das riquezas nada teve a ver com a protecção e bem-estar da colectividade nacional. Baseou-se, isso sim, na acumulação por desapossamento, espoliação e esbulho de grande parte das classes médias e das classes populares – reencaminhando essas riquezas da base para o topo da hierarquia social.

Não tenhamos ilusões. Políticos defensores da via neoliberal e tecnocratas ao serviço do poder do dia ocupam hoje posições estratégicas que lhes permitem exercer uma influência considerável, quer nas universidades e grupos de reflexão; quer nos órgãos de comunicação social; quer nos conselhos de administração das empresas e das instituições financeiras; quer no aparelho de Estado; quer no Banco de Portugal.

O domínio exercido durante décadas pelos partidos do “bloco central” – ou os do chamado “arco da governação” – sobre a sociedade e o Estado é quase total, e são eles os principais responsáveis pelo lamentável estado a que este país chegou.

4. Infelizmente, o imobilismo neoliberal – imposto pelos eurocratas e pelos políticos ao serviço do poder económico e financeiro – gerou um assustador e indesejável subproduto: uma cidadania despolitizada, caracterizada pela indiferença e a resignação. O neoliberalismo tornou-se o principal inimigo de uma genuína democracia participativa e acabou por instalar progressivamente na sociedade um estado de excepção permanente e uma economia do medo dominada pelos mercados financeiros. E é este muro que a esquerda tem de derrubar.

Não podia ser mais negativo o balanço dos quatro anos em que a direita (des)governou Portugal, recorrendo à mentira compulsiva que caracterizou os discursos dos seus chefes, à amnésia que estes inocularam na maioria dos seus apoiantes e à resignação que instilaram em boa parte da população, insistindo em que não havia alternativa às políticas de austeridade que puseram em prática.

Por falar em amnésia, vale a pena rematar este texto com uma anedota. Durante a última campanha eleitoral para a Assembleia da República, o vinho tinto alentejano servido em Beja no almoço da coligação “Portugal à Frente” chamava-se, nada mais nada menos do que, “Amnésia”… Fez-me lembrar aquela anedota do alcoólico que confessa: “Bebo para esquecer”. Um amigo pergunta-lhe: “Mas esquecer o quê?”. E o alcoólico responde: “Já não me lembro”

Cronista

Sugerir correcção
Ler 3 comentários