Quase ninguém quis ouvir falar da demissão de Maria Luís

Peticionários puxam da ironia para agradecer à deputada e ex-ministra das Finanças por aceitar trabalhar para o Arrow Global Group e fazer o assunto das incompatibilidades saltar para a agenda pública.

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Maria Luís Albuquerque respondeu hoje a perguntas dos deputados Daniel Rocha

Meia hora, um deputado, um assessor e meio e uma funcionária. Foram os interlocutores que os quatro representantes da petição que pede a demissão de Maria Luís Albuquerque como deputada da Assembleia da República por acumular o cargo com o de consultora do Arrow Global Group tiveram durante os 30 minutos em que foram ouvidos, esta quinta-feira, no grupo de trabalho das petições, incluído na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.

Sabendo que o texto não chegará ao plenário por não ter as 4000 assinaturas exigíveis – foi entregue com 1298 assinaturas e esta quinta-feira vai nas 1967 – Rui Martins, um dos quatro peticionários presentes, disse que a entrega da petição no final de Março foi um golpe de calendário. “Podíamos continuar a tentar mais assinaturas, mas o foco mediático dura uma ou duas semanas. O que se conseguiu foi eficaz: ir à comissão”, afirmou ao PÚBLICO no final.

A Fernando Anastácio, o deputado socialista que os recebeu e fará o relatório sobre a petição, Rui Martins disse que houve algo “emocional” na petição, exprime “um sentimento de revolta da cidadania perante uma situação que não sendo ilegal é politicamente e moralmente insana”. Insurgiu-se contra o “deputado em part-time” e admitiu que o texto apela à demissão da deputada para que a própria Maria Luís Albuquerque reflicta sobre o assunto – já que legalmente o Parlamento não pode demitir um deputado.

“Quando alguém faz isto [aceita trabalhar para uma empresa num sector que tutelou] e é promovida da última fila das bancadas do Parlamento para a primeira, isso leva os cidadãos a pensar que algo não está a funcionar”, insurgiu-se Rui Martins, acrescentando que o processo “cria suspeições sobre a própria e sobre a classe política em geral”.

“É importante agradecer a Maria Luís Albuquerque que tenha aceitado o convite e o caso tenha aparecido agora porque levou a que se discutisse o regime das incompatibilidades”, apontou o peticionário que considerou “estranho que os líderes parlamentares do PSD e do CDS tenham outras funções remuneradas”. O deputado Fernando Anastácio lembrou que há uma comissão eventual sobre a transparência dos cargos públicos e políticos que já tem diversas propostas dos partidos da esquerda em cima da mesa e irá receber mais contributos durante 40 dias em consulta pública. E contou que o caso da contratação de Maria Luís Albuquerque foi analisado na subcomissão de Ética e foi decidido que não havia incompatibilidade – “mas não foi consensual na comissão”, vincou.

Os peticionários defenderam que os deputados deviam ter “exclusividade acompanhada de compensações porque não se pode beneficiar nem prejudicar alguém só por ser político”, e que algumas regalias previstas no passado deveriam ser repostas e o subsídio de reintegração reforçado, exemplificou Rui Martins. Acrescentou que não deve ser alargado o chamado período de nojo (entre a saída de funções públicas ou políticas e entrada numa empresa do mesmo sector que tutelou), que é hoje de três anos.

O grupo de trabalho de audição de peticionantes tem seis parlamentares (um de cada bancada) e é coordenado pela social-democrata Clara Marques Mendes – mas nenhum deles esteve na sala. Apenas ali estiveram o deputado relator e dois assessores (um ainda se manteve até ao final, mas o outro saiu a meio da audição). Para os peticionários isso foi uma decepção. “A ausência dos deputados desta comissão é reveladora da importância que os partidos representados no Parlamento querem dar à questão: chutar para canto”, comentou Luís Matias, outro mentor do texto, defendendo mesmo que “os partidos tinham obrigação de estar ali representados” já que o tema diz respeito a questões dos deputados.

A petição foi promovida pelo MDP – Movimento pela Democratização dos Partidos e entregue a 28 de Março. Pede a demissão da vice-presidente do PSD de deputada à Assembleia da República alegando existir uma “incompatibilidade moral e política” entre o exercício desse cargo e a actividade no grupo de gestão de dívida Arrow Global Group. Os peticionários acreditam haver “suspeitas de tráfico de influência na escolha”, pela empresa, de uma ex-ministra das Finanças, já que “nenhuma empresa paga 5 mil euros mensais a alguém a troco apenas da presença em quatro reuniões mensais”.

O texto defende ainda ser “imoral acumular rendimentos (5000 euros na Arrow + 3400 euros na Assembleia) num país com 600 mil desempregados”, assim como “ser deputado em part-time (a República merece mais atenção)”. Os peticionários consideram também ser “urgente” rever o regime de incompatibilidades do Parlamento para evitar casos semelhantes e não permitir que ex-governantes possam transitar directamente para empresas que exercem actividade no mesmo sector que até aí tutelavam.

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