Quando Cavaco anilhou uma cagarra, mas não anilhou um acordo político

Os presidentes Soares e Sampaio já tinham visitado as Ilhas Selvagens. Nenhuma delas foi tão marcante como a de Cavaco. Com uma forte crise política em Lisboa, o Presidente viveu verdadeira aventura entre o mundo animal. Esta terça-feira é a vez de Marcelo desembarcar na Selvagem Grande

O clima

18 de Julho de 2013. A troika continuava a costurar a manta de austeridade que já cobria o país. Em Lisboa o clima político fervia. Vítor Gaspar, o ministro das Finanças, tinha-se demitido há pouco mais de 15 dias. Para trás deixava uma carta em que, basicamente, dizia que as políticas de austeridade não resultaram, nem iam resultar. Passos nomeia Maria Luís Albuquerque para as Finanças. Portas não gostou e também se demite irrevogavelmente. Passos não aceita, Portas voltaria atrás na palavra dada e acabaria por subir a vice-primeiro-ministro. O Presidente Cavaco não estava satisfeito com a grave crise política montada e pedia consensos, queria um governo de convergência entre PSD, CDS e PS. E até dava um docinho aos socialistas para obter um acordo, antecipando as eleições legislativas. Seguro, então líder do PS, estava tentado a aceitar, mas no PS levantavam-se vozes de peso contra o acordo.

Próxima paragem: Selvagens

Com o país em banho-maria político poucos sabiam que se estava para fazer história a mil quilómetros do território continental. Em pleno Atlântico, coordenadas 30° 05’ 40’’ norte e 15° 51’ 50’’ oeste, nas madeirenses Ilhas Selvagens, Grande e Pequena. Pela primeira vez um presidente pisaria terra na Pequena, pela primeira vez um Chefe de Estado iria dormir na Grande e ainda pegaria num calcamar, anilharia/apadrinharia uma cagarra, inauguraria um marco do correio e conheceria uma espécie de osga e de lagartixa únicas no mundo.

Coisa pouca, amendoins, dirão alguns face à crise política que se vivia no país. Não para o Presidente, que não só não adiou a visita, como voltou a salientar diversas vezes a sua “importância científica, ambiental e estratégica”. Já fonte oficial de Belém informou os jornalistas que o Presidente tinha ao seu dispor equipamento que lhe permitia estar sempre em contacto com o continente, não fosse haver notícia sobre o tal governo de “salvação nacional” que tanto ambicionava. E ainda ficava em terra (leia-se no continente) o nomeado mediador presidencial David Justino a tomar conta das ocorrências.

Pequena: As cagarras “facadinhas” no matrimónio?

Uma fragata e um navio-patrulha da marinha, um helicóptero, dezenas de militares e cerca de 165 mil euros cumpririam os desígnios do Presidente. E nesse 18 de Julho de 2013 lá chegou Cavaco às Selvagens. Primeiro à Pequena, transportado da fragata Vasco da Gama até à ilha por um pequeno bote de borracha dos fuzileiros. Pouco depois, um outro bote dava à terra Alberto João Jardim, então presidente do governo regional da Madeira.

“O sr. presidente nunca tinha pisado esta areia?”, atirou-lhe Cavaco. “E o senhor Presidente conseguiu pisar primeiro que eu…”, respondeu-lhe Jardim, denotando alguma inveja.

E o Presidente lá partiu para a visita à ilha, um pequeno pedaço de terra seco e desprovido de árvores, guiado pelas explicações de Paulo Oliveira, director do Parque Natural da Madeira. Ainda as sapatilhas todo o terreno a cheirar a novo do chefe de Estado davam os primeiros passos e eis que surge a primeira suurpresa: Paulo Oliveira jogou as mãos à terra e de um ninho sacou um calcamar bebé. Depois passou a pequena ave de penugem branca para as mãos presidenciais. Cavaco abriu a boca de espanto e depois sorriu, exibindo com alegria o bicho à comitiva.

Algumas dezenas de metros à frente o Presidente teria um momento de maior emoção: foi informado de que iria anilhar uma cagarra, uma forma de conhecer o paradeiro da ave para fins científicos.

Paulo Oliveira começou por dar algumas explicações sobre o animal: “As cagarras só têm um único parceiro na vida.”

“Sempre o mesmo parceiro?”, espantou-se o Presidente.

“Sempre”, acentuou o director do parque.

“Não sabem da facilidade de divórcio”, gracejou Cavaco.

“Sem bem que alguns estudos demonstrem que poderá não haver assim essa…fidelidade”, emendou Paulo Oliveira.

“Facadinhas…”, acrescentou o Chefe de Estado.

A conversa ficou por ali, até porque era preciso encontrar uma ave para aninhar. Azar. A primeira achada já estava marcada e voltou ao ninho. Cavaco dirigiu-lhe algumas palavras de conforto: “Boa sorte, cumprimentos ao teu companheiro.” Não obteve resposta.

Cavaco lá acabou por anilhar uma cagarra com destreza e ficou a saber que ficaria “para sempre ligado à ave” já que, cada vez que ela fosse encontrada por um investigador e identificada numa base de dados, apareceria o local onde nidificou e o seu anilhador. Uma espécie de “padrinho” do animal, como lembrou o director do parque.

Cumprida a tarefa o Presidente voltou ao mar, desta vez com destino ao navio oceanográfico Gago Coutinho, que levou a comitiva para a Selvagem Grande.

Grande: marco do correio, osgas, lagartixas e as boas notícias

Chegado à Selvagem Grande, Cavaco repousou um pouco e logo seguiu o programa presidencial. O passo seguinte foi a inauguração de um marco de correio dos CTT, uma nova valência para os dois guardas do parque natural que ali vivem. E uma ocasião para enviar um postal à mulher que tinha ficado por Lisboa. O Presidente ainda desafiou Alberto João Jardim a fazer o mesmo, mas o líder do Governo regional não estava para aí virado e calou o Presidente com um seco “entre marido e mulher não metas a colher”.

Talvez entusiasmados pelo apreço do Presidente pela vida selvagem, os guardas do parque tinham para lhe apresentar dois espécimes que apenas vivem naquela ilha, a osga Tarentola bischoffi e a lagartixa Teira dugesii selvagensis. Cavaco não lhes deu grande importância. Antes de se retirar para modesta casa dos guardas onde iria pernoitar prestou declarações aos jornalistas, para voltar a acentuar a necessidade de um acordo PSD/CDS/PS e até garantia que chegavam boas notícias de Lisboa.

E lá dormiu sob o chamamento de milhares de cagarras. Ficou a saber-se na manhã seguinte que tudo tinha corrido bem. “As cagarras resolveram ter muito respeito e consideração pelo Presidente da República de Portugal por ter sido o primeiro a dormir aqui. Não me incomodaram.” A noite tinha sido tranquila e de Lisboa “não tinham chegado más notícias”.

Era hora de o Presidente regressar a território continental. Fez-se à escapa íngreme que o levaria ao planalto da ilha para apanhar um helicóptero para o Funchal. Pelo caminho ainda teve ainda teve oportunidade de se encontrar com uma das aves que tanto o encantaram. “Uma cagarra aqui! Bom dia, bom dia.”

Lisboa: acordo por anilhar

Afinal não havia boa notícia em Lisboa. O acordo PSD/CDS/PS acabaria por não avançar. A forte vontade do Presidente ia por água abaixo. Restavam-lhe as boas recordações das Selvagens, das cagarras, em especial do bicho que “apadrinhou”. Onde andará a ave? Marcelo poderá esclarecê-lo nesta terça-feira.

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