PS mudou de líderes, não de natureza

O PÚBLICO termina hoje uma série de trabalhos a propósito do XXI Congresso do PS, no próximo fim-de-semana. A evolução do partido de Guterres a Costa, passando por Sócrates e Seguro.

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"A síntese de António Guterres há 20 anos é a que todos os líderes do PS têm seguido, moldada pela personalidade de cada um e pelas conjunturas, mas a matriz é essa." É assim que António Costa, secretário-geral do PS e primeiro-ministro, fala ao PÚBLICO sobre a evolução do PS nos últimos anos, esclarecendo sobre a estratégia da sua liderança: "Em relação a Guterres apenas acrescentamos a política de igualdade de género, o que aliás, se iniciou com José Sócrates". Quanto a diferenças? "Este Governo chega depois de um Governo neoliberal, o que marca outra linha de prioridades", explica, frisando, porém, que este "é o primeiro Governo desde Guterres que não se estreia com aumento de impostos depois de ter prometido não aumentar."

Graça Fonseca, que integra o Secretariado do PS e é secretária de Estado da Modernização Administrativa, sublinha que "os partidos têm identidade, têm uma dimensão ideológica que permanece e é isso que vai mantendo as pessoas unidas", mas lembra que "os partidos também sofrem o impacto da globalização, das conjunturas".

Valores mantêm-se

Com a experiência de quem trabalhou nos governos de Guterres e Sócrates, primeiro no Ministério da Justiça, depois na Administração Interna, sempre com Costa, Graça Fonseca considera que "há uma camada identitária do PS que mudou pouco em quatro décadas, o PS tem um fundo de valores que são estruturais e permanecem, são eles a defesa da liberdade, da igualdade de oportunidades, dos serviços públicos". Esta permanência da identidade é salientada também pelo líder da Federação de Lisboa e secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrello. Reconhecendo que "tem ganho espaço político na área do PS um discurso mais fracturante e tem perdido o mais moderado", Perestrello é peremptório a negar que isso signifique uma mudança de natureza do partido: "Recuso a ideia de um novo PS."

Para este socialista, o partido "teve sempre uma linha comum, que respeita a totalidade da sociedade portuguesa e tem que ter um discurso para todos". Quanto "aos valores "da liberdade, da igualdade de oportunidades, da solidariedade e justiça social e da tolerância," eles estão "na raiz do PS", e "é por isso que o PS sempre defendeu os direitos das minorias".

Já Mariana Vieira da Silva, secretária de Estado adjunta do primeiro-ministro, sublinha que "não se sente que o PS tenha mudado o registo ideológico", para afirmar: "Rejeito a ideia de que o PS está mais à esquerda, por causa dos acordos. Eles existem porque foi assumido o virar da página em relação à austeridade."

Olhando o PS de uma perspectiva exterior, o historiador e analista político Rui Ramos é categórico ao considerar que "não se pode dizer que o PS mudou de natureza", o que acontece é que "tem pessoas novas, porque passaram 40 anos e hoje vivem-se outras conjunturas." Duarte Cordeiro, presidente da concelhia de Lisboa e vice-presidente da Câmara, frisa, no mesmo sentido, que "há tendência para encontrar linhas de continuidade desde Guterres, há pessoas que hoje estão na cúpula que começaram com ele e que foram secretários de Estado dele ou de Sócrates."

Aprofundando, Ramos salienta que "mesmo Francisco Assis colocou a questão ideológica na prática, mas não disse que o PS é um partido radical ou que mudou de ideias" e garante que "não há no PS ruptura ideológica interna, como há com Jeremy Corbin no Partido Trabalhista." Recorrendo à história, Rui Ramos explica que "independentemente das diferenças de discurso ou de atitude entre os três líderes, não foi feito o repúdio da Terceira Via, nem o PS ou Costa repudiaram Guterres", nem "ninguém repudiou Mário Soares por não ter governado com PCP ou por ter feito o ajustamento de 1983-85". Do mesmo modo que "não há repúdio da economia de mercado, nem da democracia pluralista", nem "o PS nunca negou o princípio da consolidação orçamental ou da moeda única".

O historiador considera é que "há um discurso contra a direita neoliberal, que começou com José Sócrates em 2008-2009", sendo hoje o PS "o pólo de resistência contra as políticas neoliberais". Mas adverte para que "há um lado de jogo político pragmático nos acordos [com o BE, o PCP e o PEV] que não é uma revisão ideológica".

O perfil conta

Com a mesma matriz ideológica e uma linha de continuidade programática, é a atitude dos líderes e o seu perfil psicológico, a juntar à conjuntura em que se encontram, que fazem o PS de uns e outros líderes parecer partidos diferentes. "As lideranças mudam as organizações, se não for assim não são lideranças fortes", considera Graça Fonseca, advogando que "o que foi mudando foi a personalidade dos líderes", a qual por um lado, "molda a direcção".

Mas, por outro lado," a personalidade do líder molda-se também à leitura que o próprio faz daquilo que o país precisava como transição", defende Graça Fonseca, exemplificando: "Guterres entrou depois da aspreza de Cavaco e o país precisava de um líder dialogante. Sócrates veio após um período de forte instabilidade com Durão Barroso e depois Santana Lopes. Foi um período caótico e as pessoas precisavam de liderança." E conclui: "Agora também há uma fase nova, depois de anos crise e de dureza, com problemas como a emigração e o desemprego, Costa tem um perfil de apaziguador e dialogante."

No caso de Costa, Mariana Vieira da Silva considera que o seu perfil já se manifestou com "a sua participação nos acordos com o PCP para a Câmara no tempo de Jorge Sampaio". Graça Fonseca afirma que "Costa é um pragmático dialogante, é um conciliador e um negociador. Além disso tem uma imagem de fazedor". E Marcos Perestrello concorda: "Costa tem a imagem de um fazedor, enquanto Seguro nunca conseguiu construir, e destaca-se de Sócrates porque é um conciliador, este procurava o confronto".

Insistindo na continuidade programática, Duarte Cordeiro "lembra que a direcção constatou que havia aspectos em que era preciso reconstruir, era necessário proceder à devolução de rendimentos através de políticas públicas e de investimento", mas, acrescenta "há continuidades assumidas como o caso do ministro Manuel Heitor que continua Mariano Gago". E acrescenta que "nas políticas sociais também se está a reconstruir" o que vinha de Guterres e de Sócrates.

O peso da Terceira Via

Abordando o tema de um ponto de vista programático, a politóloga Marina Costa Lobo lembra que "Sócrates e Guterres são semelhantes porque encarnaram a Terceira Via, Guterres foi seu percursor e Sócrates seguiu-o". Salienta que "há com ambos um movimento para proteger os mais desfavorecidos" com medidas como a criação por Guterres do "rendimento mínimo e o apoio social", políticas que "são ampliadas por Sócrates".

Mas a politóloga frisa que ambos "favorecem o mercado e avançam com privatizações, o que Costa agora reverteu ao anular as dos transportes públicos e da TAP". E, destacando que "a saúde não tem estado no centro do debate", acrescenta: "Com Guterres e Sócrates "houve racionalização de meios com o Estado-Providência - saúde, educação -, basta pensar em Correia de Campos." Já em relação à educação, Marina Costa Lobo considera que se "nota uma agenda mais ideológica e menos reformista do que seria a de Guterres e Sócrates".

Frisando que "nas questões do Estado-Previdência as reformas devem ser feitas em consenso com o PSD, se não há mudanças sempre que muda o Governo", a politóloga reconhece uma "radicalização à esquerda" que corresponde "à reacção da radicalização à direita das medidas tomadas por Nuno Crato". Por sua vez, Mariana Vieira da Silva defende que, mesmo assim, há alterações programáticas motivadas pela pressão dos últimos anos: "Há mudança na exigência de regulação financeira e na necessidade de repensar o papel do Estado."

Onde parece surgir mais diferenças é entre Costa e Seguro. Duarte Cordeiro considera que foi com Seguro que "houve uma disrupção desnecessária" e Graça Fonseca diz que "Seguro foi buscar o diálogo de Guterres, mas também tinha um lado de imposição de uma orientação que nem sempre foi totalmente bem definida nem bem comunicada", por isso "as pessoas não percebiam para onde se ia".

Marina Costa Lobo sublinha que "é complicado falar de Seguro pois não foi primeiro-ministro", mas aponta que "a diferença entre Seguro e Costa é a Europa", já que "Seguro nunca pôs em causa o Memorando e Costa, desde o primeiro momento, anunciou que queria virar a página da austeridade, afastou o PS do compromisso do memorando e do PSD e aproximou-se dos assinantes do manifesto pela restruturação da dívida".

Igualmente, Mariana Vieira da Silva é da opinião que "a diferença é a atitude face à Europa", já considera que "Seguro teve outra leitura da crise e aceitou uma narrativa da direita não a tentando combater". E conclui: "A aproximação ao PCP e ao BE é possível porque foi assumida a ideia do virar a página da austeridade. Isso não existia no programa de Seguro e este não tinha as características de Costa."

Por fim, há uma diferença entre Costa e Seguro que é identificada pelo deputado Eurico Brilhante Dias, que integrou o Secretariado do anterior líder. "Na disputa Seguro-Costa há uma questão subliminar que está subjacente e que esteve sempre presente", diz, explicando que "grande parte do discurso de Seguro considerava que PS tinha dificuldade de crescer porque tinha problema de credibilidade, já que foi Governo muito tempo sem cumprir as promessas". Enquanto Costa, prossegue, "considerava que os socialistas não eram credíveis porque faziam o discurso da direita". Eurico Brilhante Dias conclui: "São duas aproximações diferentes ao país, a de Costa é mais agradável para o partido, porque apenas põe em causa o discurso e não o exercício do poder."

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