Presos políticos e políticos presos

Abril começara bem. Como, aliás, a Primavera. Sol, aragem amena, um bom prenúncio de Verão. Estava ele entretido com as palavras cruzadas no jornal quando o filho, de rompante, lhe perguntou:

— Pai, aquele senhor com nome de filósofo grego é um preso político? Disseram na televisão.

O pai levantou a caneta do papel, onde acabara de encaixar a última das verticais, e ia balbuciar um leve impropério. Mas conteve-se. Afinal, o inquiridor era o filho. Tinha de lhe explicar como deve de ser. Claro que houve presos políticos. E ele lembrava-se, enquanto explicava, dos que eram levados de casa a meio da noite por uns tipos de má catadura, direitos para os calabouços da PIDE e daí, sabia-se lá!, para Caxias, Peniche, Aljube ou até para o Tarrafal. Havia um rol de torturas pouco recomendáveis, aplicadas com eficácia pelos gorilas de serviço. Uns ficavam estropiados, outros marcados para toda a vida (no corpo ou na alma), outros morriam. Nada que importasse à polícia política. Afinal, a Pátria estava acima de tudo! E quem era "antipatriota"? Todos os que dissessem alguma coisa suspeita ou incómoda para o regime. E o regime era a Pátria, claro. Portanto, bico calado. Ou então prisão e tortura. Os presos políticos eram os que não obedeciam ao bico calado ou os que, por arrasto, eram levados na mesma rede. Para mostrar quem mandava. Esses eram presos políticos. Agora o que há é políticos presos, concluiu. Com razão ou sem ela, ele não sabia dizer. Mas competia aos tribunais decidir. E os políticos presos, ao contrário dos presos políticos, não estão presos pelas suas ideias mas acusados de crimes de delito comum, dizem o que lhe apetece, têm advogados, acesso aos jornais e à televisão e até têm quem lhes faça hinos cantados à porta da prisão (se isto acontecesse com os presos políticos, ai dos cantadores: iam fazer-lhes companhia num ápice). Portanto, dizia ele perante um filho já meio enfadado, o senhor com nome de filósofo grego é apenas um político preso. Há uma enorme diferença!

O filho, claro, já engatilhara outra pergunta. Queria saber como é que havia de receber dinheiro de uma tal Dona Ana, que andava a pagar uns milhões para Portugal ter mais turistas. Ora ele não se cansava de trazer por aí gente que conhecia dos inter-rails, claro que isso havia de ter um preço. Pacientemente, o pai explicou-lhe que a Ana não era uma senhora, era uma empresa e que isso das taxas turísticas era uma trapalhada pouco esclarecida. Mas o filho não desarmou. Queria morada e telefone. Lisboa já tinha, o Porto, Maia, Faro e Loures também queriam. Ora ele não ia ficar atrás.

O pai passou lentamente para a fila das horizontais, fingindo não ter ouvido. Mas o rapaz não era de desistências, havia de acertar nalguma. E as licenciaturas à bolonhesa, hã? Ele tinha ouvido dizer que um senhor com nome de planta tirara uma licenciatura catita só a conversar com o director da universidade sobre uns artigos de jornal. Artigos que ele próprio escrevera, aliás. E a conversa foi tão boa que o director lhe deu 18 valores. Ora isso dava-lhe umas ideias. Ia fazer várias licenciaturas, logo que pudesse, e até já tinha uma lista de teses: "A importância das redes sociais nas comunicações contemporâneas" (o título era bom, ela sabia da coisa, se a conversa fosse animada até chegaria aos 20!); "O impacto do Twitter nos modos de expressão juvenil no século XXI" (o título até era mais extenso, tinha números romanos e tudo, havia de dar bom resultado); "A influência dos jogos de computador na fixação dos paradigmas pós-pós-modernos" (enquanto pensava ia aprimorando a exigência, achava ele); "O papel das roupas de marca nas evoluções comportamentais dos players portugueses" (com esta, ainda lhe arranjariam lugar como assessor de sucesso). Tinha mais, mas preferiu guardá-las para quando o pai se dignasse responder-lhe.

O pai levantou-se, taciturno. Abriu a janela. O sol e a aragem amena ainda lá estavam. A Primavera também. Chegara o momento de uma demorada conversa. Fechou a janela e começou.

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