Poderá a governação à esquerda durar duas legislaturas?

Com a legislatura no meio, há já no Governo quem faça contas a duas legisalturas no poder. Um desejo que o BE e o PCP poderão estar dispostos a satisfazer, dependendo das condições acordadas e do programa político.

Decorre já o jogo de pressões entre o Governo, o BE, o PCP e o PEV para influenciar de forma decisiva o Orçamento do Estado para 2018 (OE2018). Tudo indica que com mais ou menos ganhos dos parceiros que compõem a maioria de esquerda, depois das autárquicas, o Parlamento aprovará o próximo guião das contas públicas.

Longe vai o tempo em que o país foi surpreendido pela inédita aliança de esquerda, e já poucos parecem ter dúvidas de que o executivo liderado pelo secretário-geral do PS, António Costa, não cumpra a legislatura por desentendimentos na maioria motivados internamente — o que é diferente de uma crise ou de uma convulsão política na Europa.

O clima negocial sobre o OE2018 faz o BE e o PCP subirem o tom das críticas e das exigências, uma situação de tensão que é acrescida pelo facto de se realizarem eleições autárquicas no início de Outubro. Ainda que num nível diverso do da governação, a consulta às urnas para escolher o poder local obriga sobretudo o PS e o PCP a defenderem os seus bastiões e a tentarem conquistar algumas câmaras ao seu parceiro de aliança.

Isto enquanto o BE, cujo peso no domínio municipal é mínimo, procura inverter a sua estratégia e criar raízes através da eleição de vereadores que lhe permitam procurar ganhar câmaras daqui a quatro anos.

PS já quer oito anos

Apesar das tensões próprias das negociações orçamentais e da campanha, a pacificação política interna e a banalização da fórmula governativa são tais que há já quem admita e mesmo quem garanta que o PS voltará a ser governo após as legislativas de 2019. Mais: a hipótese de o ser com maioria absoluta tem sido posta em cima da mesa pela consolidação nas sondagens de valores que raiam os 40%. E bastantes são os que dão como certa uma renovação dos acordos de governação entre os actuais parceiros.

É assumida por membros do Governo e por responsáveis do PS a vontade de cumprir duas legislaturas, o que permitiria, garantem, a estabilidade necessária à consolidação de opções estratégicas. Uma estabilidade que passa pela manutenção do clima de pacificação social e de inexistência de protestos de rua, que está actualmente assegurada com os acordos à esquerda.

Os argumentos adiantados ao PÚBLICO para justificar o objectivo de renovar os acordos após 2019 são os de que é desejável governar num ciclo longo, composto por uma primeira parte, agora em finalização e que consistiu em arrumar a casa e preparar saída do procedimento por défice excessivo, a que se seguem mais dois anos de preparação e lançamento de políticas. Isto para que essas novas orientações de governação possam ser acompanhadas pela aplicação de novos fundos comunitários que entrarão em vigor a partir de 2020.

Para governarem duas legislaturas, o Governo e o PS assumem abertamente a sua disponibilidade para renovar o acordo de governação em 2019. Uma disponibilidade que existirá mesmo que o PS venha a ter maioria absoluta, como o primeiro-ministro, António Costa, garantiu na entrevista à Rádio Renascença em Abril, reafirmando o propósito que incluiu logo na sua moção de candidatura às eleições primárias no PS em 2014, de quebrar com o conceito de arco do poder e puxar os partidos à esquerda do PS para as responsabilidades governativas.

No Governo? Não

A abertura do PS é para renovar o actual figurino de aliança e não vai tão longe que deseje uma participação do BE e do PCP na partilha de pastas em Conselho de Ministros. Até porque, sublinham os socialistas, a participação do BE e do PCP no Governo implicaria um grau de comprometimento que é inviabilizado pela existência de divergências profundas.

Como existe, a aliança parlamentar de esquerda permite “uma cooperação não competitiva” entre os três em que “todos ganham e todos perdem”, como afirmou ao PÚBLICO um responsável socialista. É unânime na maioria a ideia de que se o PS perdeu eleitoralmente a defesa do voto útil de esquerda, estando limitado a ir buscar votos ao centro e à abstenção, o PCP e o BE perderam o argumento de que o PS e o PSD no Governo são iguais. Além de que estes acordos fizeram os bloquistas e os comunistas perderem a imagem de partido anti-sistema, passando a sentar-se à mesa das decisões sobre o Orçamento.

Mas poderá o PS satisfazer o seu desejo de ser governo oito anos? Estarão o PCP e o BE disponíveis para voltar a dançar com os socialistas a dança do poder? E até participarem num governo?

Ainda que seja o partido que mais radicalmente distante está em relação ao PS, o PCP é o parceiro de aliança governativa que mais longe vai na disponibilidade para convergências com os socialistas. Pelo menos em termos de discurso, em que não é nova a disponibilidade para integrarem o executivo.

Também o BE admite a possibilidade teórica de participar num governo, e um membro da direcção deste partido foi claro a afirmar ao PÚBLICO que a dimensão do que venha a ser acordado depende da correlação de forças que sair das urnas: “O BE quer ser governo, mas depende da votação. Só o peso eleitoral do partido e a correlação de forças o determinará.” E o mesmo dirigente bloquista é peremptório em defender que “não haverá renovação do acordo se o PS tiver maioria absoluta”, já que “política não é simpatia, é correlação de forças”.

Quanto ao PCP, logo no primeiro encontro com António Costa, a 7 de Outubro de 2015, o líder comunista, Jerónimo de Sousa, declarou: “Nós sempre considerámos que o PCP estava preparado para assumir todas as responsabilidades, incluindo governativas, para realizar uma política diferente da que foi realizada nestes últimos anos pela maioria. Essa disponibilidade mantém-se.”

Uma tomada de posição que reproduz uma orientação antiga. Já em 1976, após as primeiras legislativas, a direcção de Álvaro Cunhal procurou entrar em acordo governativo com o partido então mais votado, o PS de Mário Soares, e foi este que recusou o acordo. A disponibilidade comunista voltou a manifestar-se para a formação de um governo alternativo com o PS e o PRD, quando este último partido apresentou uma moção de censura ao primeiro Governo minoritário do PSD, liderado por Cavaco Silva. Mais uma vez, foi Mário Soares, então Presidente da República, que recusou nomear um primeiro-ministro apoiado nessa aliança.

Só em 2015, perante o quadro parlamentar em que a coligação PàF era vencedora e o PSD detinha a maior bancada parlamentar, mas a esquerda estava em maioria na Assembleia da República, o PS partiu para uma aliança à esquerda como forma de António Costa chegar a primeiro-ministro. O acordo assumiu mesmo a forma de compromissos escritos com o BE, o PCP e o PEV, por imposição do então Presidente da República, Cavaco Silva. Um guião de governação em que o PCP e o BE colocaram os mínimos denominadores comuns de entendimento.

Mas a direcção comunista é clara a assumir em conversa com o PÚBLICO que a possibilidade de fazer um novo acordo com o PS — incluindo participar num governo — resultará não da garantia de lugares mas do grau de convergência encontrada. O que passa não só por conteúdos políticos mas também pela ideia de que “um acordo deve abranger homens e mulheres sem partido e de outros partidos”, ou seja, “um alargamento político que traduza um alargamento da frente social representada, a expressão do Governo terá de reflectir as mudanças políticas e sociais”. Um objectivo que os comunistas entendem só ser conseguido com o reforço eleitoral da CDU nas urnas. O que, segundo um responsável comunista, implica o aumento da frente popular de luta: “Para compromissos mais estruturantes, tem de haver muita luta do povo.”

Aposta na continuidade

Ouvidas as três partes com peso na actual solução de poder — Governo, PCP e BE —, fica claro que a renovação dos actuais acordos será mais fácil se o PS sair das urnas com maioria relativa. Mas responsáveis governamentais admitem que a questão não é simples e que a renovação das posições conjuntas está intrinsecamente ligada à forma como poderão ser geridas no futuro as tensões internas na maioria. Ou seja, como será feita a gestão das divergências de posição entre o PS, o BE e o PCP sobre questões como a participação no euro e o respeito pelas regras europeias, assim como sobre quais as margens orçamentais de expansão da despesa pública ao nível da política interna.

As dificuldades de renovação da aliança parlamentar são assumidas pelo PCP e pelo BE. A direcção dos bloquistas considera mesmo que depois do actual acordo, que classifica como “de mínimos”, o próximo “tem de ser mais trabalhado, mais exigente”. Isto porque “uma coisa é um programa de emergência” feito a correr para assegurar o poder em 2015 e que permitiu ao PS governar e ganhar “um ar de esquerda, só porque repôs os mínimos da tradição social-democrata”, outra coisa é olhar para aquilo que o BE considera como os problemas estruturais.

Assim, qualquer acordo com o BE terá de satisfazer divergências que vão muito além da diferença de posições sobre o futuro da União Europeia, ou sobre a renegociação da dívida. A questão não se coloca em ser pró ou contra a União Europeia, advoga o mesmo dirigente, ela passa por opções de fundo ao nível global da governação: “O problema é a natureza de classe do projecto europeu e esse é o mesmo problema de natureza de classe do que o PS defende em áreas como o trabalho. A clivagem é a natureza de classe das políticas.” 

Também o PCP aponta para um caderno de encargos negocial mais elevado do que há dois anos. “A apreciação será diferente. É preciso fazer avaliação de percurso, identificar a situação do país no momento e encontrar respostas que completem o que fica por resolver e que respondam aos problemas”, sublinha um responsável da direcção do PCP.

Ou seja, para o PCP é preciso “responder à contradição entre as necessidades do país e os constrangimentos externos da União Europeia”, acrescenta, exemplificando: “É o euro, é a dívida, é a legislação laboral. Mas também há constrangimentos internos, como o domínio do capital sobre sectores estratégicos, como a redução dos custos da energia que está dominada por grandes grupos económicos. Há opções que têm de ser feitas. Ou se enfrenta esses grupos ou não se consegue.”

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