Para acabar com o estado de negação

O país que emergiu deste Verão em brasa exige que não nos limitemos a repetir o passado.

Reli ocasionalmente uma crónica que aqui publiquei a 6 de Novembro passado, “Orçamento do Estado e estado de negação”, e fiquei surpreendido — apesar de vivermos num país onde parece não haver lugar para surpresas — com a repetição monocórdica dos comportamentos políticos quase um ano depois, quando se prepara o Orçamento para 2018 e estamos em vésperas de eleições autárquicas. Evidentemente, a retórica política não é exactamente a mesma, até porque a conjuntura económica não é idêntica (os índices de desempenho e confiança melhoraram significativamente, apesar das fragilidades e incertezas habituais) e o ambiente pré-eleitoral impõe alterações inevitáveis na relação de forças entre o Governo, os seus aliados à esquerda e a oposição de direita. Mas a essência das atitudes não mudou.

Entretanto, Portugal foi fustigado por uma vaga de incêndios sem precedentes que não apenas reduziram a cinzas grande parte da paisagem como deixaram à vista as consequências funestas de uma persistente (ou seja, histórica) falta de visão estratégica para o país, expondo a extrema vulnerabilidade, a desordem e o abandono a que estão votadas áreas cada vez extensas do território. A propósito, referi nesse texto acerca do debate do Orçamento do Estado (OE) de 2017 que António Costa se mostrara mais brilhante a criticar a oposição do que a “revelar chama na mobilização de vontades próprias, como foi o seu relatório de teor burocrático sobre o Plano Nacional de Reformas, repetindo os milagres prometidos pelo ministro do Planeamento, Pedro Marques”. Milagres esquecidos ou adormecidos que os fogos de Verão iriam consumir, levando o actual ministro da Agricultura — embora já com uma longa experiência do sector — a querer competir agora com D. Dinis na reforma da floresta...

Dito isto, o que temos ouvido e visto recentemente no teatro político parece ser um remake mecânico da peça anterior, com as mesmas atitudes rígidas e crispadas no passado, como em Novembro de 2016. “Para uns — a oposição —, a culpa dos problemas colocados pelo OE cabe toda ao Governo actual (e seus parceiros) e à estratégia errada ou inexistente que levará o país de novo à bancarrota económica. Para os outros — PS e parceiros —, a culpa cabe inteiramente ao Governo anterior PSD/CDS e à sua política austeritária que nos conduziu ao desastre social dos anos da troika.” Por outro lado, lembrava ainda nesse texto, “cada qual manipula a verdade em função do que vê ou quer ver, como a discussão bizantina sobre se haverá ou não aumento de impostos”.

O diabo afinal não chegou, desmentindo Passos Coelho, mas as alterações do discurso actual são puramente cosméticas, centram-se no famoso tema das cativações ou tendem a um crescendo de agressividade verbal, a que já não escapa o próprio Presidente Marcelo, sobretudo depois da ressabiada intervenção de Cavaco Silva na “universidade de Verão” do PSD. Sinal dos tempos, Marcelo não resistiu a uma escaramuça infantil com Passos Coelho na sua passagem por Andorra (talvez por se tratar de um pequeno principado, permitiu-se furar a sua própria regra de não falar de política interna no estrangeiro). Um exemplo de como o papel interventivo e moderador do Presidente — altamente profícuo no caso dos fogos e de Tancos, com a exigência de responsabilidades políticas a quem as tem — pode ficar diminuído pela sua incontinência discursiva.

Ora isto acontece num momento em que o país corre o risco de continuar refém da menoridade política, das vistas turvas e da falta de estratégia não só de uma oposição sem rumo mas também de um Governo e seus apoiantes que jogam num instável equilíbrio táctico de curto prazo. O país que emergiu deste Verão em brasa exige que não nos limitemos a repetir o passado e a persistir em estados de negação.

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