Pacheco Pereira e o medo que tudo abandona

A esquerda tem de ser organização popular e solução para quem hoje teme.

“Eles esperam no seu fel – até um dia”. Pacheco Pereira (PP) antevê no seu artigo de sábado uma maré “trumpista” à portuguesa, feita daquele “ressentimento que, como a água, segue o caminho mais fácil”.

De facto, vivemos crises de identidade em vários planos, cuja combinação favorece a deriva populista e xenófoba. PP tornou-se, aliás, dos mais lúcidos críticos da violência institucional europeia, que impôs o “arco da governação” e cujo fracasso alimenta o perigo populista.

Pacheco Pereira define quem pode encher esta maré: os “abandonados”. Eles são “os trabalhadores, os pequenos empresários, os operários”. Vindos do “meio” da escala social, “não perderam tanto como pensam que perderam, mas o que perderam chega para se sentirem desprezados e abandonados”.

PP acusa o Bloco de co-responsabilidade neste abandono. É ver as limitações das lutas dos precários, em que tanto se empenha, ou a defesa das “causas fraturantes” (expressão escolhida por PP). Estas críticas merecem reflexão, porque puxam a pergunta mais difícil: se só os Trumps sabem conquistá-los, que alternativa pode disputar a vontade dos “abandonados”? E, já agora, como e para quê? Procuremos as respostas nos avisos de Pacheco Pereira.

Primeiro aviso, o esquecimento dos de baixo: “como o discurso do Bloco faz muito da agenda política da esquerda, a começar pelo PS, o abandono destas pessoas pela política leva-os a procurar outros meios de representação”. Esta análise choca com o ciclo 2015/2016. Abrindo a via à atual solução, o Bloco responde aos muitos que baralharam a política através do voto, pondo a direita em minoria e o PS em segundo, criando novas possibilidades. É por isso que a direita ainda não parou de praguejar contra as “reversões”. E os “abandonados” conhecem pelo nome os resultados da opção bloquista: salário mínimo, pensões, abono de família e tarifa social da energia.

Segundo: o Bloco esquece os pobres porque os precários são “do ‘meio’ da escala social”. Mas então não é precisamente desse “meio” que vêm os abandonados, os que “encontraram no destino dos filhos uma barreira que antes não existia – a de verem a geração que se lhes seguia ter muito menos oportunidades”? Como reconhece PP, a organização dos precários é das únicas experiências (a que junta a dos reformados da Apre!) “com algum sucesso em alargar a mobilização social”. Pois é. Criar novos vínculos de solidariedade na classe trabalhadora, identidade coletiva nos setores mais fragmentados, experiência contra a desertificação sindical - haverá caminho mais fértil contra a atomização social em que medram os trumpismos?

Terceiro: o Bloco “ajudou a tapar esse enorme ressentimento com distracções”. Invocando as “causas fraturantes”, PP parece referir-se à legalização do aborto, aos direitos LGBT ou à morte assistida: “Podendo ser em si importantes, ao deslocarem-se para o centro do debate político (...) funcionaram como um real abandono destas famílias e pessoas”.

Mora nesta crítica a nossa maior divergência. Para PP, sob a pressão do fundamentalismo machista e homófobo (Trump, Farage…), a esquerda deveria secundarizar a luta pela igualdade. Ora, Portugal é o melhor exemplo do erro dessa tática. Mudanças na lei e na vida, hoje pacíficas e amplamente maioritárias, foram ganhas na disputa das consciências, reduzindo o campo dos populistas conservadores (Pacheco dá o exemplo dos jovens do CDS), desejosos de trepar agarrados aos “valores” e à “segurança”. A esquerda venceu porque lutou. Com mulheres pobres em tribunal e  discriminações longe do “centro do debate político”, teríamos hoje mais gente “abandonada”. A retirada da esquerda é o triunfo dos demagogos.

Para vencer a política Trump, ninguém pode ficar para trás. Como ganhar esse povo? Com a fraternidade contra o ódio, mobilizando todas as causas e reinventando a emancipação do trabalho. A esquerda tem de ser organização popular e solução para quem hoje teme. Para quê? Para ganhar a maioria e distribuir a riqueza, com a democracia no controlo da economia e da planificação ecológica. Socialismo — a senha de Bernie Sanders —, para vencer o medo que tudo abandona.

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