Outra vez sozinhos, frente ao mar

Por uns breves dias deixámos de prestar atenção à mercearia onde se compra e vende a pobre política nacional e fomos obrigados a olhar para fora e a descobrir como o mundo que conhecemos ameaça ruir.

E como nesse movimento cada vez mais nítido e inexorável o país aparece frágil e desarmado para poder resistir a um cenário em que a União Europeia se dissolve e o mundo livre se corrompe na demagogia e no populismo. Num artigo notável escrito para o PÚBLICO, Jorge Sampaio avisava que “atravessamos um momento especialmente crítico para o nosso futuro colectivo” e nesse momento até a trapalhada da Caixa Geral de Depósitos parece um episódio fútil e o magnífico desempenho da economia portuguesa no terceiro trimestre uma notícia desgarrada e sem direito a festa. Porque a realidade destes dias, e seguramente a dos próximos meses (anos), é a de saber o que pode fazer um país pequeno, periférico e endividado na tormenta que se desenha. Como escreveu o ministro Augusto Santos Silva num outro texto notável, “não se trata de ser pessimista, mas de ser realista, admitindo, no sombrio tempo actual, todas as possibilidades”.

Durante séculos vivemos como país voltados para o Ultramar, e o fim desse ciclo longo não foi traumático (pelo contrário, como notou Eduardo Lourenço no seu Labirinto da Saudade, virámos a página com uma espantosa naturalidade) porque inventámos um novo destino europeu. Talvez tenhamos vivido neste quadro alguns dos melhores anos da nossa História, pelo menos os que foram de 1986 até 1990, em que houve estabilidade, modernidade, crescimento e quase pleno emprego. Mas esse ciclo começou a abalar com o "Brexit". Porque se há um novo Portugal europeu, jamais deixou de existir um Portugal Atlântico, no qual a velha aliança e as ligações históricas aos britânicos não perderam sentido. O "Brexit" foi a amputação do membro europeu no qual sempre nos amparámos, apesar dos abusos de Beresford nas Guerras Peninsulares, apesar do Ultimato de 1891, apesar da menoridade com que Londres tantas vezes nos tratou. Sem a sua feição atlântica, a Europa está condenada a tornar-se ainda mais Mitteleuropa, ainda mais alemã. Ou seja, mais distante e inalcançável.

Poderíamos viver bem na Europa sem os ingleses, fazendo com a Espanha, os países do Sul e com a França uma espécie de frente capaz de reequilibrar a União em direcção ao seu flanco mais frágil. Mas também esta Europa nos parece cada vez mais vazia, sem sentido e sem projecto. A crise das dívidas soberanas criou um directório no qual os mais fortes impõem as regras e os mais fracos obedecem. O "Brexit", os refugiados, a anomia económica, as dívidas, a crise bancária e, principalmente, o regresso do nacionalismo xenófobo e populista aumentaram a tensão sobre um projecto cada vez mais trémulo. Não há como o negar: depois de admitir a sua mortalidade, a Europa colocou-se na condição de ser mortal.

Optimistas como somos, era possível olhar para o mapa e encontrar outros lugares para firmar âncoras e estabelecer laços. O espaço da lusofonia, por exemplo. Ou, ainda melhor, os Estados Unidos. Mas nem aí parece haver lugar para grandes expectativas. Angola não muda de regime nem lança as bases de uma economia aberta. Moçambique, apesar do gás e das minas, derrapa no peso do seu próprio atraso. E nos Estados Unidos parece ter acabado de vez o espírito wilsoniano da abertura ao mundo e de compromisso com a expansão da democracia e do capitalismo liberal. Donald Trump rompeu o elo que, com todos os defeitos e problemas, dava unidade e coerência ao Ocidente que conhecemos. A tentação da extrema-direita republicana fará o mundo viajar até ao tempo das incertezas, convulsões e crises.

Portugal arrisca-se assim a ficar só no mundo, afogado nas suas debilidades e hesitações. Vai sendo tempo de pensar no que aí pode vir. Como escreveu Jorge Sampaio, “a alteração dos equilíbrios geopolíticos exigirá reflexão aprofundada do nosso lado, realinhamentos e reposicionamentos diplomáticos de política externa que convém prepararmos atempadamente”. Sem podermos contar com o altruísmo da geração que fundou a Europa contemporânea, a hora é de contarmos ainda mais connosco. Com os nossos serviços públicos, com os nossos recursos, com as nossas empresas e com as nossas instituições democráticas.

Olhando para o passado, podemos notar que é na política que se encontram os melhores trunfos para se resistir à turbulência. Na vaga da extrema-direita que varreu a Europa dos anos 30, as democracias que resistiram foram as que melhor souberam abraçar compromissos entre as suas principais forças políticas – caso especial da Inglaterra ou dos países nórdicos. Portugal tem a felicidade de ter uma extrema-direita irrisória e confinada a um bando de arruaceiros, embora haja por aí muito bafio saudosista escondido nos armários. Depois, se há um prodígio que se possa atribuir a este Governo do PS é o de ter trazido o Bloco e o PCP para a esfera dos acordos políticos. Claro que, no discurso, ambos combaterão a “submissão ao euro”, a ligação à NATO, o poder do sistema financeiro ou o liberalismo económico. Claro que ainda há quem, como Francisco Louçã, acredite que “à União só resta agora o ‘reforço de uma aliança alemã’, com o desvanecimento de Hollande e Renzi e com o 'Brexit', e é por isso que está condenada”. Mas, no essencial, hoje o Bloco e o PCP são partidos muito mais confiáveis do que alguma vez foram nas últimas décadas.

Ainda assim, falta ainda uma aproximação entre os dois principais partidos do regime. Quando Augusto Santos Silva nota que uma das raízes do alastramento das ameaças na Europa e da “trumpização” da América está na “incapacidade de valorizar as alternativas ao centro”, não significa que esteja a tentar seduzir o PSD para uma coligação. Quer apenas dizer que os partidos que partilham entre si a mesma herança europeia, o mesmo legado de valores do Estado democrático e da protecção social, não se podem digladiar por causa de vírgulas quando em causa está todo um texto que ambos partilham.

O que vem aí, já há poucas margens para duvidar, é pior do que está e muito pior do que esteve. Pode ser que Matteo Renzi ganhe o referendo italiano, pode ser que Marine Le Pen seja copiosamente derrotada nas presidenciais francesas. Mas o vírus do nacionalismo xenófobo e demagógico está à solta e nada indica que haja antídoto para o travar a curto prazo. O que hoje se escreve nas redes sociais com toda a naturalidade seria impensável há apenas dois ou três anos, e essa “banalização do mal” é já por si um sintoma de que o vírus se entranhou no corpo social e que anda por aí à espreita da primeira oportunidade para causar uma epidemia. Um sistema partidário unido no essencial para lhe fazer frente é a esperança que nos resta. Teremos líderes partidários à altura dessa esperança?  

 

 

 

 

 

 

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