Os “partidos burgueses” e a concertação social

Estranhará algum leitor ou leitora a desenvoltura da linguagem. Eu também estranhei mas, quando cheguei a Oslo há muitos anos, foi o que encontrei: a imprensa e o noticiário da TV, bem como a linguagem corrente da opinião pública da rua, assim lhes chamavam, “partidos burgueses”. O mesmo na Dinamarca, Suécia e Finlândia, ao que sei.

E, acima de tudo, os próprios assim se designavam. Não era portanto nem insinuação nem insulto, era orgulho: a direita são os “partidos burgueses”. Talvez se perceba como surge esta identidade, que é herdeira do século XIX, quando a jovem social-democracia representava a massa trabalhadora, esmagada pela miséria, sem direito a voto e arrastada para guerras incompreensíveis, e também por isso atreita a entusiasmos épicos. Os partidos conservadores, assustados com as revoluções do século e, sobretudo, com a Comuna de Paris (no fim d’ “O Crime do Padre Amaro”, Eça conta-nos como Amaro, o cónego Dias e o Conde de Ribamar se indignavam no Chiado com o “horror” de “meia dúzia de bandidos a destruir Paris”, “tudo perdido, tudo a arder”), fincavam-se por isso no seu privilégio social, temerosos de que o mundo desabasse. A burguesia era o lugar em que a política mandava, os salões pensavam, o Estado e os canhões se mobilizavam, os capitais e concessões se distribuíam.

Naturalmente, para os partidos de direita do pós-Segunda Guerra, como a democracia-cristã italiana ou o gaullismo francês, as referências identitárias tinham que ser mais políticas do que de classe social, pois tinham que representar a massa que faz a maioria e então já votava. Para isso tinham a religião ou o autoritarismo. Em contrapartida, para os partidos de direita que nascem em Portugal depois do 25 de Abril, descompassados da história por Salazar, era imperativo um novo estratagema discursivo, tinham que se simular radicais e ser “pela sociedade sem classes” e até pelas mais ousadas “nacionalizações”. Não se podiam dizer “partidos burgueses”, com aquele pacato orgulho que ilustrava os congéneres nórdicos, tinham que se fazer partidos tudolitários.

Claro que isto foi indo ao sítio com o tempo e os governantes passaram a ser recrutados nas administrações dos bancos e entre gente fina. O BES foi povoando todos os governos e o do PSD e CDS encheu-se de distintos ex-Goldman Sachs. Os “partidos burgueses” estavam back in business.

Ora, essa questão social é o problema de Passos Coelho. Ao recusar a gratificação que, em troca da subida do salário mínimo, o governo concedeu ao patronato e que este tanto apreciou, o PSD argumenta que o faz por convir ao seu jogo político. Mas o patrões querem é o conforto do dinheirinho e marimbam-se para o tal do jogo. Reclamam o seu quinhão e é Passos quem os ameaça, o que só pode dar tumulto.

Pior ainda, o PSD está a por em causa a concertação social e nem parece saber o mal que lhe faz. A concertação é a forma sofisticada da Câmara Corporativa dos dias de hoje mas, em vez de vénias e pedinchice ao Estado, o que aliás continua a fazer com garbo, mobiliza uma aura de legitimidade que pairaria sobre as instituições eleitas. É por isso um mecanismo para preservar o poder patronal, reclamando a força espiritual dos “homens do dinheiro” e do “sentimento dos mercados”, nada mais do que isso. A “concertação” social nem conserta nem concerta, limita-se a reproduzir o soturno direito de veto patronal, em nome da ideia de um poder social acima da esfera da deliberação pública, por exigir assentimento prévio. Ao derreter esta transcendência no seu jogo, Passos lança Saraiva nos braços de Costa.

A questão, portanto, é que os nossos partidos burgueses atropelam a sua burguesia, o que cria uma cacofonia animada. A isso chama-se uma crise. Para a esquerda, tudo boas notícias.

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