Os discursos de 25 de Abril de Obama e de Marcelo

O Presidente aludiu a uma contraposição binária entre dois projectos políticos diferentes para o país mas são muito grandes as diferenças que subsistem entre a esquerda de filiação democrático-liberal e a esquerda filo-comunista.

1. O grande discurso do dia 25 de Abril foi pronunciado em Hanôver por Barack Obama. Trata-se de uma peça oratória de excepcional qualidade, na forma como na substância, impressionante pela inteligência, pela lucidez e pela coragem que encerra. Obama inscreve-se cada vez mais na linha dos raros políticos que conciliam idealismo e realismo, capacidade visionária e pragmatismo, contribuindo assim para a concretização de transformações históricas desprovidas de qualquer ilusão revolucionária. Em Hanôver, ao lado da chanceler Merkel, dirigiu-se aos europeus de uma forma a que já não estamos habituados. A partir da sua condição de não-europeu, confrontou-nos com as nossas responsabilidades e com a nossa história. Lembrou-nos as origens do projecto político consubstanciado na União Europeia, enunciou os sucessos do seu já longo percurso, aludiu às angústias do presente e terminou com uma grande proclamação de esperança no futuro. Usou as palavras certas, não iludiu a complexidade de certos conceitos nem tentou amenizar a aspereza de algumas situações. Pelo contrário, usou de uma frontalidade dura e não escamoteou os temas difíceis. O que torna os seus discursos especialmente singulares é, aliás, a recusa da vacuidade e a total rejeição da fatuidade. Nele as palavras remetem sempre para um sentido e exprimem com clareza a densidade de um pensamento assaz complexo. Inspira sem iludir, persuade sem impor, seduz sem enganar. Convenhamos que é um caso muito raro no nosso tempo. No nosso e provavelmente em qualquer outro.

Do discurso de terça-feira passada ressaltam quatro ideias que de algum modo resumem e explicitam o pensamento e posicionamento políticos de Barack Obama. Em primeiro lugar, a recusa da lamúria e do pessimismo na abordagem da presente fase histórica da Humanidade. A representação fragmentada da realidade, o empobrecimento discursivo resultante de uma excessiva valorização das emoções mais primárias, a veemente apologia daquilo que as democracias comportam de menos virtuoso, tem concorrido para o triunfo de um criticismo radical que alimenta o extremismo sectário e populista. O Presidente dos Estados Unidos começou a sua intervenção na Alemanha lembrando que, apesar de todas as dificuldades, o mundo atravessa um dos seus melhores momentos históricos. Em segundo lugar, lembrou-nos que a nossa história conjunta não pode ser devidamente apreciada se não valorizarmos a importância do combate pelo triunfo da liberdade. Infelizmente, esquecemo-nos amiúde de que o século XX foi o século das grandes ameaças totalitárias, corporizadas pelo nazi-fascismo e pelo comunismo, e das suas respectivas derrocadas perante a afirmação vitoriosa das democracias liberais. Àqueles que, com uma ligeireza moralmente reprovável, se empenham agora em branquear o passado recente de algumas doutrinas políticas e correntes ideológicas, Obama veio opor um lancinante apelo ao respeito pelo valor supremo da liberdade. Em terceiro lugar, contra a corrente mediaticamente dominante do anticapitalismo de pacotilha que por aí campeia, afirmou categoricamente a superioridade da economia de mercado em relação a qualquer outro modelo de organização económica. Com efeito, correndo o risco de ser apelidado de neoliberal por uma qualquer cabeça de vento das que por aí andam prenhes de slogans e vazias de conceitos, Obama voltou a revelar uma enorme coragem no plano moral. Em quarto lugar, pediu aos europeus para que não se esquecessem de quem são. No elogio do que o passado conteve de brilhante, o líder estado-unidense encontrou a melhor forma de falar do futuro. Confrontou os dirigentes políticos europeus com as suas imensas responsabilidades históricas e fez  –  como há muito já não se ouvia  –  uma extraordinária apologia do projecto político europeu.

Em Hanôver, o Presidente americano demonstrou uma vez mais que a democracia não tem necessariamente de caminhar no sentido da demagogia, que a emoção retórica pode e deve ser colocada ao serviço de uma razão complexa, e que a linguagem da política só é verdadeiramente útil se concorrer para o enriquecimento da realidade e se não claudicar na vertigem populista que empobrece a capacidade de compreensão e de acção dos seres humanos. Estou cada vez mais convencido de que Obama é, de longe, a mais importante figura política dos últimos anos. Que os Estados Unidos da América o tenham reconhecido e por duas vezes eleito para a sua mais alta magistratura é algo que nos faz ter confiança no discernimento desse grande povo livre e democrático que é o povo americano.

2. Por cá cumpriu-se na Assembleia da República o ritual da comemoração da Revolução de 74. O Presidente da República aproveitou a ocasião para salientar a necessidade de promoção de alguns entendimentos interpartidários de vasto alcance, sem prejuízo da diversidade de pontos de vista que estruturem o espaço político e que se materializam especialmente no confronto clássico entre o poder e a oposição. Marcelo Rebelo de Sousa, fazendo jus à sua elevada cultura jurídica e política, deixou bem clara a necessidade de estabelecer uma adequada articulação entre disputa e compromisso, entre pluralismo e consenso. Não pode ser acusado de apelar a qualquer tipo de unanimismo pré ou antidemocrático, e seria injusto atribuir-lhe qualquer intenção de desvalorização da conflitualidade política inerente à própria representação parlamentar. Nisso, ele distingue-se bem dos tecnocratas que abominam a política ou dos ideólogos puros que cultivam o sectarismo. Há porém um aspecto em que a sua análise não parece reflectir adequadamente a nossa presente realidade política. Motivado, decerto, pela vontade de simultaneamente simplificar e estabilizar o actual cenário parlamentar, o Presidente aludiu a uma contraposição binária entre dois projectos políticos diferentes para o país. De um lado estaria a direita, do outro situar-se-ia a esquerda. Não creio que assim suceda, já que   como de resto os vários discursos partidários o demonstraram   são muito grandes as diferenças que subsistem entre a esquerda de filiação democrático-liberal e a esquerda filo-comunista. É certo que o entendimento parlamentar que vigora em torno da sobrevivência do governo socialista pode ocasionalmente suscitar alguma confusão, mas, quando assim ocorre, os dirigentes dos partidos da extrema-esquerda aprestam-se a recordar a sua verdadeira natureza. Basta atentar no que eles dizem e escrevem sobre a Europa, sobre os entendimentos transatlânticos ou sobre as respostas a dar ao fenómeno da globalização. Por isso mesmo não estamos apenas confrontados com dois projectos políticos distintos para Portugal. A menos que o Partido Socialista, subvertendo a sua história e abjurando de alguns dos seus princípios constitutivos fundamentais, passasse a adoptar posições antieuropeias, antiatlantistas e proteccionistas. Não me parece que esse risco exista.

Eurodeputado (PS). Escreve à quinta-feira

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