O regime está podre

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Só mesmo a falta de pudor é que permanece.

Temos de agradecer ao Tribunal Constitucional a amabilidade de ter divulgado o acórdão nº3/2016, que decretou a inconstitucionalidade do corte nas subvenções vitalícias a antigos detentores de cargos políticos, em vésperas das eleições presidenciais. Após mais uma paupérrima campanha eleitoral, este admirável acórdão e respectivo timing oferecem-nos uma excelente oportunidade para reflectir sobre a desgraça moral do regime e a incapacidade de o nosso sistema político e constitucional encontrar respostas decentes para os problemas que nos cercam. Da esquerda à direita, da Assembleia da República ao Tribunal Constitucional, muito poucos escapam à vergonha de todo este processo, enquanto mais uma monumental paulada ético-político-jurídica no já tão torturado lombo da pátria.

Permitam-me, contudo, um ponto prévio, para evitar o paleio populista: eu sou dos que acham que os políticos são muito mal remunerados em Portugal, devido à enorme desproporção entre vencimento, responsabilidade e poder. O que acaba invariavelmente por acontecer em casos como este é os baixos salários serem compensados com prebendas indirectas, subsídios manhosos e lobismos de todo o tipo. Parece-me infinitamente preferível um ordenado maior com maior número de incompatibilidades do que um ordenado menor com privilégios e subvenções oferecidos por debaixo da mesa.

Dito isto, vamos à troika de poucas vergonhas. Em primeiro lugar, temos 30 deputados do Bloco Central – entre os quais a actual candidata à presidência Maria de Belém – a pedirem às escondidas a apreciação constitucional de um artigo do Orçamento de Estado para 2015 que só a eles (titulares de cargos políticos) diz respeito. Como ontem aqui explicou Rui Tavares, e muito bem, milhares de cidadãos adorariam poder pedir a fiscalização da constitucionalidade de normas que os aborrecem – só que não podem. Não têm esse privilégio. Os deputados têm, em função do cargo que ocupam. Ora, usar esse cargo não para fiscalizar normas em nome do povo, mas em nome do seu interesse particular, é uma infâmia.

Em segundo lugar, somos agraciados com mais uma fundamentação delirante por parte do Tribunal Constitucional, invocando o sacrossanto princípio da protecção de confiança para impedir o poder executivo legitimamente eleito de corrigir situações de privilégio que considera injustas e reequilibrar as contas do Estado. Nas mãos de juízes aos quais parecem ter sido extirpados os sentidos da prudência e da ponderação (sete em 13, neste caso), é evidente que o princípio da protecção de confiança dará sempre para impedir qualquer lei de alterar qualquer direito que seja considerado “adquirido” – ele é uma monumental estátua ao statu quo que deveria substituir a de Pombal na rotunda do Marquês, já que estamos todos condenados, pela Maldição do Palácio Ratton, a andar eternamente à roda do velho regime, sem nunca sair da sua insustentabilidade.

E em terceiro lugar – cereja no bolo da desvergonha – temos a reacção furibunda de políticos de esquerda como Marisa Matias ou Catarina Martins ao novo acórdão do Tribunal Constitucional. Escasso tempo atrás, quando as decisões do TC invocavam exactamente o mesmo princípio para impedir cortes estruturais na despesa pública, essas decisões eram absolutamente sagradas. Agora já não são. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Só mesmo a falta de pudor é que permanece. Assim não vamos longe.

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