O piar da coruja

O que é verdadeiramente relevante em Cavaco é a irrelevância dele para os debates mais importante do país, a começar pelo debate europeu.

“A coruja de Minerva voa apenas à noitinha”, escreveu uma vez Hegel. Queria com isto dizer o filósofo que só quando uma civilização se aproxima do seu fim é que se chega à sabedoria (de que a coruja de Minerva é o símbolo) que teria sido necessária para a salvar. Por outras palavras: só entendemos uma época quando ela está à beira de acabar.

É uma máxima importante para os dias de hoje. Lembrei-me dela ao ouvir o discurso de Cavaco Silva na Universidade de Verão do PSD. A coruja de Minerva só chega ao conhecimento no fim de uma época. Cavaco nem sequer entende quando uma época já acabou. Cavaco Silva continua a falar da esquerda portuguesa como se as suas resistências contra a atual solução governativa tivessem sido comprovadas, quando o que sucedeu foi exatamente o contrário do que ele previu: o país saiu do procedimento por défice excessivo, não houve nenhum choque frontal com as instituições europeias, a economia cresce e as metas do défice foram atingidas.

Cavaco faz um discurso em que as únicas alternativas são a austeridade ou a saída do euro, sem perceber que o debate português e europeu já avançou muito para lá disso desde 2011. Noutra pessoa, não seria grave. No caso de Cavaco, a rigidez ideológica teve consequências severas. Enquanto Presidente da República, ele não só desperdiçou a oportunidade de participar no debate sobre a reforma do euro como acabou o seu mandato a tornar mais difícil a vida de um governo português que prometia ser mais ativo nesse debate.

Há muito quem critique em Cavaco o ressentimento e a propensão para uma política vingativa. E há muito quem o tente defender usando pretextos tão desgastados como o do suposto preconceito social que, se é que alguma vez existiu, há décadas não tem qualquer relevância na maneira como o país vê Cavaco. O que é verdadeiramente relevante em Cavaco é a irrelevância dele para os debates mais importante do país, a começar pelo debate europeu. Uma irrelevância verdadeiramente extraordinária, quando consideramos que foi ele o chefe de governo português que mais anos participou de reuniões do Conselho Europeu. Para lá de todos os seus remoques sobre os adversários que ele imagina a “perderem o pio”, o que adversários como eu gostariam seria de um ex-presidente, mesmo de direita, mesmo Cavaco, que piasse mais sobre os assuntos cruciais para Portugal e para a Europa.

Enquanto terminava esta crónica, ia ouvindo o debate televisivo entre Merkel e Schulz para as eleições federais alemãs. A diferença não podia ser mais instrutiva: a primeira pergunta foi sobre a Europa. A segunda também. E a terceira. E por aí adiante… durante toda a primeira hora de debate. Exatamente o contrário do que sucedeu aqui há uns meses em França. Também por aqui se entende porque a Alemanha defende bem as suas posições na Europa: porque sabe quais são. E sabe quais são, porque as discutiu.

Um país como Portugal, com a agilidade que lhe dá a sua dimensão e a sua coesão cultural, teria toda a vantagem em entender que um país com um debate europeu ativo é um país mais forte. Infelizmente, não temos esse debate, e infelizmente Cavaco Silva não é um ex-presidente que nos queira ajudar a ter esse debate.

É pena. A centralidade da Europa vai continuar a ocupar os nossos próximos anos. Os tempos estão a mudar e não é preciso ser a coruja de Minerva para o entender.

Sugerir correcção
Ler 13 comentários