O pelourinho dos tempos modernos

Alguém conhece algum déspota que se recolha, a cada noite, em convento da Ordo Fratrum Minorum Capuccinorum?

Nos últimos dezoito meses aconteceram, por essas redes sociais que nos desesperam mas que não podemos deixar à solta, quatro episódios que me levaram a posições reincidentes e que, reconheço, não podem ser enquadradas no politicamente correto da web.

Os acontecimentos que envolveram camaradas e amigos, mas também parlamentares e vários autarcas do PSD, não deixaram de ter o respetivo desenvolvimento nos órgãos de comunicação social, demonstrando que nestes tempos anda tudo ligado.

O primeiro caso foi o de João Soares. Então Ministro da Cultura, usando o Facebook, utilizou o que é básico para quem cumpriu os mínimos do aprendizado da língua mãe. As figuras de estilo são essenciais para irmos além do trivial, para não mimetizarmos os monossílabos que o carreiro de internautas cada vez mais usa.

João Soares nunca se propôs dar uma bofetadas a quem quer que fosse, como qualquer terráqueo, com um QI de 50, entende. O ministro ainda esclareceu, de forma elaborada, talvez como o pedagogo homônimo lhe haverá ensinado, o que queria com tal post, mas acabou por se demitir.

Achei mal, protestei, não me contive na sexta fila do hemiciclo. Por este andar só pode ser ministro quem se apresentar eunuco na linguística, pasmado na palavra de Bocage.

O segundo caso, foi o da insinuação soez sobre Diogo Lacerda Machado. Jurista competentíssimo, conhecedor do mercado da aviação, recebeu os mimos da desconsideração por ser amigo e próximo de António Costa. Machado estava a cometer um sacrilégio ao aceitar defender os interesses do Estado numa privatização que havia sido feita de forma criminosa.

O terceiro caso, que teve desenvolvimentos posteriores, foi o da família César. Conheço Carlos César há quase quarenta anos e isso chega-me para servir de escudo protetor perante a aleivosia.

Um político não pode ter um filho na política, nem a esposa pode ser funcionária pública por concurso, nem o irmão pode ser jornalista há quase cinco décadas e, por essa via, a filha deste seu irmão também não poderia sequer existir. Até onde chegamos! Lembro-me do tempo em que Luís Montez penava por ser genro do Presidente da República, mesmo sendo um dos grandes da rádio, lembro-me do ar de alguns causídicos quando comparavam Paulo Mota Pinto ao excelente pai que teve, e também me lembro dos tempos em que os embaixadores Mathias eram menorizados, em certos jornais revolucionários, por serem filhos de quem eram.

Também sobre estes casos, mais pessoais, reivindiquei o direito a não existir qualquer capitis diminutio sobre César, rejeitei o princípio de que não "basta ser", lamentei este velho estilo salazarento da velha de soalheiro que de todos diz mal.

O quarto caso, também em dois episódios, é o que se prende com as ofertas que empresas e particulares concedem a agentes públicos. Este caso já não é do domínio do tolerável, é do universo do Hospital Magalhães de Lemos.

Viver em comunidade pressupõe um conjunto de princípios. Eles devem ser tidos em conta no peso e na medida, não em valor pecuniário mas na implicação subsequente que podem revelar. O convite da GALP para que um conjunto de pessoas assistisse a um jogo de futebol, incluindo a viagem e a estadia, deve ser levado em conta dessa relação de cordialidade, de urbanidade, atitude superior perante a inveja de quem não se importava nada de ter ido mas que não teve direito a rifa.

Os atacados foram três excelentes secretários de Estado, e o Governo, lesto e com uma visão provinciana, resolveu aprovar um código de conduta. Nesse papel o valor máximo para aceitar uma oferta é de 150 euros. Nunca ninguém explicou a razão para este valor, mas também não interessa, porque seria sempre uma razão sem fundamento.

Esse código de conduta é agora a ferramenta que todos usam para bater forte em tudo.

Hugo Soares e Luís Montenegro também foram ao jogo e servem para o outro lado da barricada twiteira martelar os 140 caracteres.

O último episódio, que teve o nome pomposo de Huaweigate, só nos tem feito descobrir nomes que nunca tinham aparecido em qualquer pesquisa do Google. Há, porém, um previdente deputado, Sergio Azevedo, um presidente de câmara em guerra, Paulo Vistas, e um assessor num gabinete ministerial, Nuno Barreto. E por este último eu só teria a abonar, a recomendar.

Há, todos os anos, centenas de viagens das grandes empresas para congressos, feiras, encontros de inovação. Eles devem ser aceites pelos portugueses, principalmente por todos os que têm poder de decisão e desde que garantam e obedeçam aos princípios da transparência e da imparcialidade. É assim que acontece em qualquer país decente, em qualquer canto que não vive a olhar pela fechadura da porta.

Mas o que mais irrita este mortal que escreve, é o facto de Sérgio Azevedo ou Nuno Barreto não poderem aceitar um convite de uma empresa, serem sacrificados nesta praça com novo pelourinho, mas ter havido tantos portugueses, nomes sonantes da nossa política interna e externa, que aceitaram os generosos convites do Clube de Bilderberg. Está claro, o valor da estadia e do transporte foi sempre inferior a cento e cinquenta euros e nesses eventos só se reza e nada mais.

Vivemos em tempos de profunda hipocrisia. Se continuarmos a dar para este peditório o que acontecerá é o regresso de outras ditaduras, porque elas nascem quando os cidadãos perdem a leitura sobre a realidade, se deixam vencer por sentimentos primários e sem nexo e quando os eleitos se calam olhando, cobardemente, a impertinência. E também perante esses ditadores e essas ditaduras a pergunta que se impõe só pode ser - alguém conhece algum déspota que se recolha, a cada noite, em convento da Ordo Fratrum Minorum Capuccinorum?
 

Deputado do Partido Socialista

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