O Partido Socialista, um legado de Mário Soares

Sem a existência de um PS forte e combativo, capaz de actuar simultaneamente no Parlamento e nas ruas, o país teria provavelmente evoluído para uma guerra civil de consequências desastrosas.

1. Mário Soares deixou-nos um vasto e valioso legado político, como ficou bem evidente nos múltiplos trabalhos ensaísticos e jornalísticos publicados ou revisitados na hora da sua morte. O seu papel decisivo na instauração de um regime político democrático-liberal, a sua contribuição determinante para a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, o seu inestimável concurso para a superação de graves crises financeiras e a sua acção em prol de uma dimensão social do Estado fazem parte desse legado e suscitam um reconhecimento colectivo vastamente consensual. Há porém um elemento central desse mesmo legado que tem sido um pouco esquecido e que corresponde a uma instituição por ele fundada, que teve e continua a ter uma relevância excepcional na vida pública portuguesa: o Partido Socialista.

Sem o PS a nossa história contemporânea teria sido radicalmente diferente. Soares, que provinha quase geneticamente da tradição oposicionista de índole republicana e que na sua juventude tivera uma breve passagem pelo Partido Comunista, percebeu, no decorrer dos anos sessenta, que se impunha a criação de um novo movimento político identificado com o socialismo democrático europeu e devidamente integrado no respectivo contexto institucional internacional. Essa decisão revelou-se da maior importância ainda antes do 25 de Abril de 1974, ao permitir a diversificação das forças de oposição à ditadura, e manifestou-se determinante para a evolução do país no período posterior a essa data.

Recuemos até aos anos sessenta, período marcado, do ponto de vista da contestação ao regime anterior, pela posição quase hegemónica do Partido Comunista e por dois momentos de convulsão estudantil muito influenciados por vários movimentos sociais de natureza esquerdista e nitidamente crítica da tradição social-democrata europeia. É neste contexto tão desfavorável que Mário Soares, contando com um grupo restrito de personalidades que aglutinava à sua volta, ousou avançar para a criação da Acção Socialista Popular, num primeiro momento, e, mais tarde, do próprio Partido Socialista. A decisão por si tomada, nas eleições legislativas de 1969, de apresentar listas próprias nos distritos de Lisboa, Porto e Braga, sob a sigla da CEUD, configurou uma ruptura de vastíssimo alcance no seio da esquerda portuguesa e outorgou-lhe, apesar da mediocridade dos resultados eleitorais obtidos, um estatuto especial que viria a ter efeitos muito benéficos poucos anos mais tarde. Convirá, contudo, recordar que só uma personalidade de convicções muito firmes poderia agir como então Mário Soares agiu. Já na altura, boa parte de uma certa esquerda bem-pensante lisboeta caía no erro de ver nele um político obsoleto.

Quando regressou a Lisboa nos finais de Abril de 74, Soares trazia na mente a edificação de uma democracia pluralista em que se integraria como líder de um partido empenhado na promoção de uma sociedade mais desenvolvida e socialmente mais justa. Percebeu rapidamente que teria de travar um grande combate para evitar quer o perigo de instauração de uma ditadura comunista de natureza pró-soviética, quer a ameaça de restauração de um regime semi-autoritário empenhado em excluir grande parte da esquerda da participação na vida cívica nacional. Revelou então um talento político notável. Como ministro dos Negócios Estrangeiros promoveu a descolonização, percebendo que não existiam condições mínimas para o seu adiamento, e angariou apoios externos para uma democracia que então se ia esboçando. Como líder político-partidário enfrentou tenazmente o Partido Comunista e os sectores militares por este dominados e liderou um amplo movimento nacional que impediu a instalação daquilo que se designava à época – eufemística e cinicamente – por democracia popular. O debate que então travou na televisão com Álvaro Cunhal, porventura o mais importante do último meio século, merece ser destacado pelo que em si mesmo significou. Ora, sem a existência de um Partido Socialista forte e combativo, capaz de actuar simultaneamente no Parlamento e nas ruas, o país teria provavelmente evoluído para uma guerra civil de consequências desastrosas.

O PS revelou-se depois de igual modo imprescindível na sustentação do primeiro governo constitucional, o qual levou a cabo uma política caracterizada pela preocupação de pôr cobro às desmesuras do período pós-revolucionário, sem abdicação da vontade de edificar as bases de um Estado social moderno e justo. Foi uma época muito conturbada, com o Partido Socialista a sofrer violentos ataques à esquerda e à direita, e que culminou com a aprovação de uma moção de censura votada pelo CDS, pelo PSD, pelo PCP e pela UDP. Face às circunstâncias dramáticas então vividas, em especial no plano financeiro, Mário Soares promoveu um entendimento parlamentar com o CDS do qual resultou um novo governo com a presença de ministros oriundos desse partido. A experiência durou pouco mas contribuiu para a normalização da vida democrática portuguesa.

Enquanto líder da oposição aos governos da Aliança Democrática, Mário Soares nunca perdeu de vista o interesse nacional e por isso mesmo recusou-se a enveredar por um radicalismo sectário que tantos reclamavam na altura. Pelo contrário, sob a sua liderança, o Partido Socialista concorreu para a plena consagração do carácter civilista do regime democrático, expurgando-o de indevidas tutelas militares. Voltaria a ser primeiro - ministro num contexto muito difícil, quando houve de novo necessidade de recorrer à ajuda do FMI e de aplicar medidas impopulares conducentes ao reequilíbrio das contas públicas nacionais. Também nessa ocasião foi muito atacado, mas contou com o apoio da maioria no interior do Partido Socialista. Recordemos aliás que submeteu a um referendo interno a proposta de realização de uma coligação governativa com o PSD, na altura dirigido por Mota Pinto.

Entretanto, Mário Soares e o PS tinham promovido aquela que foi sem dúvida a opção mais relevante dos nossos tempos democráticos: a opção pela integração no espaço político europeu. Nessa opção revela-se toda a matriz doutrinária do Partido Socialista – um partido de esquerda democrática e liberal, declaradamente europeísta, adepto do modelo da economia de mercado devidamente articulado com uma intervenção redistributiva por parte do Estado, tendo em vista a promoção de uma verdadeira justiça social.

No tempo presente é desse PS que o país continua a precisar, nomeadamente para combater os projectos e as forças políticas que continuam empenhadas em denegrir o projecto europeu nas suas diferentes materializações históricas. Tal como há 30 ou 40 anos atrás, subsistem em Portugal, à esquerda e à direita, sectores profundamente hostis a tudo ou quase tudo o que a União Europeia significa. Tal como então, tentarão vender-nos a ideia da falência desse mesmo projecto.

2. De todos os momentos das cerimónias fúnebres realizadas na terça-feira, quero, por razões compreensíveis, destacar a passagem da urna contendo os restos mortais de Mário Soares pelo Largo do Rato. Foi um instante único de plena identificação de múltiplas emoções individuais com um profundo sentimento de comoção colectiva. Ali estávamos nós, militantes socialistas de várias gerações, simultaneamente tristes e orgulhosos diante de alguém que nos acompanhará até ao fim como a referência política maior das nossas vidas. Havia em todos os rostos um misto de lágrimas e de júbilo. Viva Mário Soares!

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