O ministro é sereno

O que importa que milhares de crianças estejam, há uns bons quatro anos, a aprender disparates na escola?

“Este Governo veio para ficar. E ficará enquanto o povo português quiser!” Não, a frase não é recente nem pertence a António Costa (depois de empossado) ou a Passos Coelho (antes de ser apeado). Foi dita a 8 de Novembro de 1975 pelo primeiro-ministro, almirante Pinheiro de Azevedo, durante o célebre comício no Terreiro do Paço onde teve de apelar à calma à vista de uns cartazes a arder junto à estátua: “O povo é sereno, não tem perigo, é apenas fumaça!”

Hoje, porém, a serenidade mudou de dono. Perante as dúvidas de um Presidente frenético, o calmíssimo ministro dos Negócios Estrangeiros (coisa também calma, como se sabe) veio dizer que Portugal “aguarda serenamente” a conclusão da ratificação do acordo ortográfico pelos membros da CPLP. Mais não disse, nem precisava, que a serenidade aconselha recato. O ministro da Cultura, também serenamente, aquiesceu. Costa, sem falar (já falara), idem. Se pensarmos bem, faz sentido. Um governo que tão calma e serenamente agiu nos casos da PACC dos professores, dos exames do básico, dos testes de Cambridge, da privatização da TAP, dos salários, da sobretaxa no IRS, da actualização das pensões, RSI, CSI ou abono de família, tão serenamente quanto bombeiros correm para um incêndio, só podia falar em serenidade no caso, nada urgente, do acordo ortográfico.

Na verdade, o que importa que milhares de crianças estejam, há uns bons quatro anos, a aprender disparates na escola? É algo que perturbe a serenidade do ministro? Ou do Governo? Absolutamente nada. Outra personagem sereníssima, Malaca Casteleiro, veio juntar-se à calmaria, dizendo aceitar (sim, porque em matéria de AO é ele quem manda) que se venha a proceder a “correcções de conteúdo”, mas só quando os países em falta o ratificarem. Tomem nota: as incongruências e deficiências que o AO tem e todos lhe reconhecem, até os seus apoiantes, vão continuar a ser ministradas às criancinhas e ao povo por enquanto houver um governo sereno e um senhor que até tem o desplante de querer mandar no Presidente da República. Isto é fogo, não é só fumaça.

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