O homem que falhou demais

Cavaco falhou até nas duas vezes em que teve razão.

Cavaco Silva optou por ser consensual, esperançoso, banal e chato na sua última mensagem ao país. Não houve temas fracturantes nem cotoveladas, apenas manifestações de “profundo amor a Portugal”, a batida retórica da “identidade universalista” que “deu novos mundos ao mundo” (bocejo), o elogio chapa cinco aos “jovens cientistas”, e um louvor – esse, sim, mais original –, “aos portugueses que estão a fazer Portugal”, ao contrário dos portugueses que andaram a desfazer Portugal, entre os quais é difícil não incluir o próprio Cavaco. Aliás, a forma como no Ano Novo tentou incutir esperança à pátria com o entusiasmo de um cangalheiro é uma boa metáfora do seu legado.

Dificilmente a História será generosa para com Cavaco Silva: os seus dez anos como Presidente da República são um rotundo fracasso. Foi com ele em Belém que a troika chegou a Portugal, foi com ele em Belém que quatro bancos faliram (BPN, BPP, BES e Banif) e foi com ele em Belém que o Partido Socialista chegou ao governo após uma das maiores derrotas da sua história, através de uma simulação de acordo de entendimento que Cavaco aceitou, e cuja admirável solidez lhe permitiu resistir de 26 de Novembro de 2015 (data da tomada de posse de António Costa) a 23 de Dezembro de 2015 (data da aprovação do orçamento rectificativo com a oposição de toda a esquerda). Menos de um mês, portanto.

Cavaco foi lento a compreender o país à sua volta (demorou muito a perceber o perigo que Sócrates representava e a catástrofe que se seguiria); quando finalmente o compreendeu nem sempre agiu da melhor forma (foi incapaz de travar a espiral de endividamento que acabou por conduzir o país à bancarrota ou de pôr fim aos instintos controleiros de Sócrates, conseguindo o prodígio de lhe oferecer o papel de vítima no caso das escutas de Belém), e das poucas vezes que percebeu o caminho certo e agiu da maneira mais correcta raramente conseguiu impor a sua vontade (assim aconteceu no Verão de 2013, com a crise do “irrevogável” e o falhado pacto de regime, assim voltou a acontecer após as eleições de Outubro, onde andou a discursar grosso para acabar a assinar fininho). Cavaco falhou até nas duas vezes em que teve razão.

Claro que para todos estes acontecimentos poder-se-á argumentar que a responsabilidade não é de Cavaco, porque não era primeiro-ministro, nem banqueiro, nem líder partidário. Está certo. Mas o cargo de presidente da República existe – se é apenas para exibir impotência, há políticos mais fotogénicos e com melhor dicção. A verdade é que a “magistratura de influência” de Cavaco não se viu. E dá-se este paradoxo: tendo ele uma visão minimalista das funções presidenciais, acabou por ser sob a sua vigilância que o cargo desceu a níveis de desprestígio inéditos. Não me recordo de algum dia alguém ter dito de Eanes, de Soares ou de Sampaio aquilo que José Manuel Pureza, vice-presidente do Parlamento, disse do discurso de Cavaco: “A novidade desta mensagem de Ano Novo do Presidente da República é ser a última.” Esta frase extraordinariamente deselegante fica muito mal a Pureza, mas não vi ninguém sair em defesa de Cavaco. E não é por acaso. A esquerda acha que ele foi sectário, a direita acha que foi passivo, e o povo acha, e bem, que ele cochilou durante o turno. Soares queria ser o presidente de todos os portugueses. Cavaco acaba o mandato sendo o presidente de nenhum.

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