"Não há uma ruptura dramática [com a austeridade] que mereça desfiles e procissões"

“É indispensável para Portugal que este Governo seja bem sucedido”, afirma Sérgio Sousa Pinto, sublinhando que. “o dramatismo do combate político” na Assembleia não corresponde a uma “ruptura com o passado que tenha eliminado a austeridade”.

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Miguel Manso

Sérgio Sousa Pinto rompeu com António Costa e esclarece que não está "nada preocupado com o pós-Costa", até porque, afirma, "existe um secretário-geral" e não tenciona "contribuir para a sua substituição". Diz que Portugal não pode sair do euro. Defendendo que de forma "pragmática" se procure alterar o rumo europeu, alerta para o risco do Brexit.

Votou em Costa?
Não, não votei em ninguém, não participei na votação.

Vai intervir no Congresso?
Ainda não decidi.

O que o pode levar a intervir?
Quero fazer uma intervenção que seja útil, que não seja redundante ou perniciosa para o partido.

Como vê a caracterização feita por Francisco Assis de que o PS e o Governo estão "manietados"?
Gostei das entrevistas porque acho que são desassombradas. O partido precisa de gente que diga com clareza o que tem a dizer. É a única maneira de honrar as suas obrigações perante o seu partido.

Tem um percurso diferente do de Assis. Foi olhado como um delfim de Costa, integrava o Secretariado. Há quem possa concluir que a sua ruptura possa indiciar que procura construir uma alternativa futura ao PS de Costa.
Não tenho a menor vocação e inclinação para me determinar por razões de ordem táctica. Desde os vinte e poucos anos que faço aquilo que considero que devo fazer. Nunca as minhas tomadas de posição são instrumentais em relação a quaisquer expectativas que eu possa ter.

Vê-se numa solução de direcção num PS pós-Costa?
Não estou nada preocupado com o pós-Costa. Existe um secretário-geral, não tenciono contribuir para a sua substituição. Essa é uma questão que não me interessa rigorosamente nada. O que me interessa é o momento que estamos a viver. O futuro quando chegar, chegou.

Como vê os primeiros seis meses do Governo?
É muito cedo para fazer balanços.

Mas o que pensa deste Governo?
Penso que é indispensável para Portugal que este Governo seja bem sucedido.

Faz a mesma avaliação sobre a ligação ao BE e ao PCP?
A minha avaliação no início era de princípio. Como no passado, o PS devia ter criado condições para que aqueles que ganharam as eleições governassem. Agora considero que temos de reconhecer que essa questão já perdeu oportunidade e não vamos ficar até ao fim dos tempos a martelar na questão da legitimidade do Governo. O Governo tomou posse, apresentou um programa, o programa passou na Assembleia e o Governo está em funções. Ainda por cima, tem o apoio inequívoco do actual Presidente. Parece-me absurdo persistir no problema da legitimidade, que está ultrapassado pela própria dinâmica dos acontecimentos.

Mas não vê sinais de crítica de Marcelo ao Governo?
Isto parece o sonho de Sá Carneiro: uma maioria, um Governo, um Presidente.

Como vê a relação entre os dois?
O Presidente da República tem uma prioridade que é alterar a liderança do seu partido. É uma situação que tem um precedente histórico conhecido. Vítor Constâncio demitiu-se da liderança do PS acusando Mário Soares, Presidente, de querer derrubar a sua direcção. O que está a acontecer neste momento, do meu ponto de vista – podendo eu estar enganado, é natural e possível que o esteja –  é evidente que existe da parte do Presidente  da República uma prioridade clara que é não inviabilizar o funcionamento do actual Governo, mas sim favorecer uma alteração no seu próprio partido e concorrer para a alteração da sua actual direcção. Isso explica a convergência táctica entre o Presidente [e o primeiro-ministro] É uma verdadeira marcha nupcial entre o Presidente e o primeiro-ministro e que tem como única explicação o facto de o Presidente ter elegido como sua prioridade uma rearrumação das forças na direita e uma alteração na liderança do PSD.

Há no PS quem questione a permanência no euro ou essa questão não se coloca?
No PS, como em todos os fora onde participam pessoas com pensamento livre e comprometido com o interesse nacional, existe uma reflexão sobre as vantagens e as desvantagens da nossa adesão ao euro. Assim como uma ponderação das vantagens e desvantagens de permanecer no euro.

Neste momento, no contexto em que se vive, qual é, na sua opinião, a posição?
Portugal tem de tomar as decisões que se impõem para permanecer no euro.

E são elas?
Isso significa manter políticas que em larga medida podem ser qualificadas como políticas de austeridade em linha de continuidade com o que aconteceu. Porque digamos que o dramatismo do combate político parlamentar não tem tradução numa ruptura com o passado que tenha eliminado a austeridade. Continuamos a viver em austeridade.

As medidas continuam, têm é outro nível de incidência?
Com certeza que continuam. Aliás tem de haver uma reflexão sobre a maneira como são doseadas, como é doseada a austeridade. Não podemos persistir naquilo que, do meu ponto de vista, é uma flagelação insustentável da classe média.

Está a dizer que o Governo mantém algumas medidas de austeridade que são necessárias para Portugal se manter no euro?
O actual Governo, tanto em política europeia como em opções de política económica, permanece fiel às escolhas fundamentais que inspiraram o Governo anterior, que é fazer o que tem de ser feito para permanecer no euro. E, curiosamente, há um certo histrionismo parlamentar e um certo histrionismo no debate político que não tem, do meu ponto de vista, justificação face aquilo que são as grandes linhas de permanência da política portuguesa que são, indiscutivelmente, fazer os sacrifícios que é preciso fazer para não sair do euro.

Então não há uma ruptura com a austeridade como diz Costa?
Sinceramente não há uma ruptura dramática que mereça desfiles e procissões.

Há uma renovação geracional que é mais próxima do BE, não vê mérito nessa nova geração?
Há certamente gente no PS que parece ter vergonha de não ser do Bloco. Mas isso são pessoas que ainda não completaram o seu processo de aprendizagem do que é ser socialista democrático. O tempo resolverá isso.

É possível no futuro um outro Governo do PS ou o actual ou o PS na oposição fazer acordos com o PSD?
Para quem acha que os problemas nacionais residem na existência de uma direita política e que afastar do poder a direita corresponde a instaurar no país as condições para a felicidade universal, naturalmente que isso não fará sentido. Para quem considere que existem problemas no país, que são problemas históricos, que são grandes atrasos nacionais, problemas difíceis de resolver e que exigem alianças à esquerda contra a direita nuns casos e alianças com a direita contra a esquerda noutros, já que a realidade é complexa e como aconteceu no passado o PS terá de se entender novamente com a direita.

O fenómeno da radicalização não é só português. Como vê a radicalização da política nas democracias europeias?
O eleitorado está a dar-se conta de algo que já tem alguns anos que é um empobrecimento das alternativas políticas e que há um mainstream que funciona como uma gaiola de ferro que exclui as escolhas e as pessoas sentem que votando no centro esquerda ou votando no centro direita não conseguem fazer a diferença. E isto tem muito a ver com as condições da construção europeia e com o impacto, neste momento histórico, da construção europeia nas democracias nacionais.

Foi um dos primeiros políticos portugueses a viver a mediatização através de propostas sobre questões de direitos humanos, aquilo que é visto por muitos como uma agenda radical. Para além da espuma dos dias, o que ficou dessa experiência?
Essa pergunta não vai ser respondida satisfatoriamente porque exigia que eu pensasse sobre ela e não há tempo para o fazer. Mas o que eu posso dizer é que calhou eu chegar à Assembleia da República numa altura em que o divórcio entre a vida social e o universo político era de tal maneira acentuado que questões como a da interrupção da gravidez ou dos casais homossexuais eram ignorados, como se pudessem ser ignorados. E para mim e para a minha geração eram questões que não podiam ser ignoradas. Não corresponderam a heroísmo nenhum nem a coragem de espécie nenhuma, corresponderam ao cumprimento da obrigação sagrada do deputado de trazer para a esfera política e parlamentar questões urgentes que exigiam resposta e reconhecimento e que emergiam da vida social.

Mas isso foi olhado como uma agenda radical.
Isso porque o partido era excessivamente conservador e tinha um primeiro-ministro com uma visão do país excessivamente conservadora e achava que o PS ia criar um problema com o país real, como na altura se dizia, que iam castigar, penalizar durante muito tempo o PS. Foi esse profundo erro de avaliação que conduziu a um desamor de sectores sociais importantes em relação ao PS e que esteve na origem social do Bloco de Esquerda. Como é que um conjunto de grupúsculos de extrema-esquerda que nunca tinham tido expressão parlamentar de repente se convertem no Bloco de Esquerda? Houve uma parte significativa da esquerda, sobretudo da esquerda urbana, que se sentiu ferida pelo profundo conservadorismo da direcção do PS.

Essa desconfiança.
Não era por desconfiança nenhuma nos políticos. Era porque uma parte da esquerda não se reconhecia no seu partido, uma parte da esquerda não comunista não se reconhecia já no seu partido.

Aderiu a outra proposta?
Não quero fazer especulações no tempo que corre. Mas durante muito tempo o BE era como um termómetro: quando o PS estava mal e febril, o BE subia como o mercúrio. Era o indicativo do protesto, da insatisfação das pessoas para com o seu grande partido, para com o partido que é a grande instituição da esquerda democrática, que esteve no centro de todas as transformações reformistas que entraram em vigor e que contaram em Portugal e que é o PS.

Foi isso que aconteceu nas últimas eleições legislativas?
Do meu ponto de vista, sim.

O regresso dos nacionalismos mostra como a utopia federalista não passa de uma quimera?
O regresso dos nacionalistas é observável. Mas acho que verdadeiramente o fenómeno em presença é de recrudescimento de propostas políticas de ruptura com o consenso que não admite alternativas. A ideia de que as coisas estão longe de serem perfeitas, as coisas em boa verdade estão até bastante mal, mas ninguém responsável pode admitir que existam alternativas. Responsavelmente, não há alternativas. É este cimento insuportável que alguns associam ao centro esquerda ou ao centro-direita, outros associam ao mainstream europeu outros associam à interdependência que vem da globalização, é este reconhecimento que temos de aceitar o nosso destino e de que a política já não é capaz de mudar o que quer que seja que gera uma reacção desesperada que tende a privilegiar os extremos, sejam eles nacionalistas ou populistas terceiro-mundistas como o caso do Podemos em Espanha.

E como é que isso se combate?
Eu não tenho soluções milagrosas. A única coisa que eu sugiro é uma política de verdade. E esperança de que as pessoas adiram a um discurso de verdade sobre as reais condições e sobre o que pode ser alcançado. Se as pessoas preferirem a utopia, a aventura, comprometer aquilo que alcançamos na nossa esforçada caminhada de quarenta anos de democracia para alinharmos com aventuras demenciais como as venezuelanas. E temos um país aqui ao nosso lado que é a Espanha, com um partido profundamente populista, um populismo de esquerda que é tão perigoso para as instituições democráticas e liberais como o populismo de direita, se as pessoas preferirem a solução da aventura e da irresponsabilidade, se acharem que as instituições democráticas não prestam, que os políticos não prestam, se têm um desamor profundo em relação ao regime, então o que se pode fazer? Eu prefiro cair ao lado das pessoas que eu acho que têm razão, do que modernizar-me tornando-me eu próprio um populista.

Falando nessa questão das euforias, como é que vê o referendo do Reino Unido para a saída da União Europeia? É nessa perspectiva?
Evidente que é. É. E por que é? Porque se metade dos ingleses concebem a possibilidade de sair da União é porque se revoltam contra esta ideia de que, por estarmos na UE, não temos verdadeiramente alternativas disponíveis. Ou seja, só lhes resta seguir a política única que é a política de responsabilidade.

There is no alternative?
Isso não é possível. As pessoas mais cedo ou mais tarde vão rebelar-se contra esse discurso, que é um discurso, aliás, desmentido pela história, de que não há alternativas. Acho que é do interesse do Reino Unido e é do interesse da Europa que o Reino Unido perceba. Mas não é só o Reino Unido. Toda a Europa deve meditar profundamente sobre as razões deste desamor. Este desamor é o reconhecimento da política única, do bloco de cimento que nos caiu em cima e que nos privou das grandes escolhas e das reais alternativas. Como é que é possível um país com quase mil ano de história, como o nosso, cuja sobrevivência passou por tantas vicissitudes, riscos e desafios, aceitar, como fazendo parte do nosso dia-a-dia político, democrático, que o nosso Presidente, como Egas Moniz, vá à Alemanha implorar que sejamos poupados a um regime de sanções que, a ser aplicado, só demonstraria a inanidade do actual sistema europeu? Que isto seja encarado com normalidade para mim é uma profunda aberração.

Voltando a essa questão da falta de alternativas, até que ponto é que essa busca pode passar por uma refundação da social-democracia na Europa de uma forma que a resgate a contaminação neoliberal?
Na moção que foi ao congresso, a contaminação neoliberal aparece referida em termos muito precisos: fala-se num vírus. É horrível esta expressão vírus. A ideia de que o socialismo é uma substância pura, mas que foi maculada, foi tocada por um vírus neoliberal e agora nós, na nossa pureza do socialismo democrático ficámos uma substância pardacenta e menos pura. Isto não é próprio da mundividência de um socialista. Um socialista não acha que ele próprio é uma essência, é a expressão pura de um pensamento, susceptível de ser abastardado por revisionistas e traidores. Isso é o PCP, não somos nós. Não há cá vírus, não há bacilos. O socialismo democrático é um sistema aberto de pensamento.

Como está hoje o socialismo democrático?
Para responder a essa questão é preciso responder a outra mais premente: como é que está a Europa? Acho que essa é a grande questão. Nós temos de espreitar as oportunidades que permitam uma mudança qualitativa na política europeia. Temos de reconhecer os limites da nossa capacidade de influir na política europeia e temos que, em cada circunstância histórica, seguir a política que pragmaticamente serve os interesses de Portugal e da Europa de acordo com a nossa compreensão do que deve a integração europeia. Com muito pragmatismo e tendo sempre esperança que a oportunidade ocorra. Nós sabemos o que o futuro nos reserva. Imagine-se que o Reino Unido decide sair da Europa? A Europa está profundamente doente, sobreviverá à saída do Reino Unido? E a própria ideia europeia, as ambições da Europa. O que acontece à Europa sem o Reino Unido? Será uma Europa desequilibrada, em que o peso da Alemanha passa de grande a esmagador.

Alguém está a discutir isso em Portugal?
Não. Dir-me-ão: mas porque é que Portugal não tem esse discurso, não bate com o sapato na mesa e diz ‘tem que se mudar a união monetária? Isso é realismo. Isso serve para o Bloco, não serve para o PS.

Como é que isso se faz?
Com humildade, com sentido de história e perceber.

O que é que isso significa?
Significa que o PS tem que, com pragmatismo, fazer o que serve o interesse de Portugal.

E neste momento isso seria o quê?
Significa que, por exemplo, em vez de especular sobre as vantagens de renegociar a dívida tem que avaliar se é função histórica do PS suscitar um debate que neste momento está condenado a ser derrotado e prejudicar o interesse nacional, independentemente da questão de saber se a dívida é sustentável e compatível com o crescimento.

Discutir isso seria prejudicial a Portugal?
Levá-lo às instâncias comunitárias? Seria demência.

Como vê as reuniões de Costa com Renzi, Hollande, Tsipras?
Muito bem, porque é preciso dialogar e trocar pontos de vista e que o PS exerça a sua influência para que criem oportunidade para que as coisas mudem na Europa e em Portugal. É que as pessoas que não têm responsabilidade de governar, não precisam de ter outra coisa muito importante que é humildade. Não prometer o que não pode ser feito. Não dizerem que vão fazer o que galvaniza as pessoas, mas é contrário aos seus interesses. Mais vale ser mal sucedido a defender as pessoas e as suas vidas concretas até ao fim, do que ser bem sucedido a enganá-las a prometer-lhes paraísos que não estão disponíveis.

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