O debate sobre eutanásia está cheio de perguntas. Por isso, Marcelo fica em silêncio

O Presidente garante que não vai dizer uma palavra até chegar um diploma a Belém. Não quer condicionar o debate e quer ter as “mãos livres” para decidir. Bloco não desiste de apresentar projecto de lei.

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Chefe de Estado não quer intervir mas apela ao debate sobre a morte assistida Enric Vives-Rubio

O moderador do debate teve de impor uma rígida disciplina para que a plateia não se alongasse em considerações e perguntas. O tema não podia ser mais controverso: eutanásia e suicídio assistido. E foi no arranque do ciclo de debates, organizado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e intitulado Decidir sobre o final da vida, nesta segunda-feira em Lisboa, que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, prometeu ficar em silêncio até que chegue algum diploma a Belém. Não quer condicionar, nem ser condicionado. Mas quer se debata o assunto.

Foi o que se fez nesta manhã, na Faculdade de Ciências Médicas. Ouviram-se dilemas de médicos, sugestões de ex-governantes, argumentos contra e a favor. O médico patologista e Prémio Pessoa, Sobrinho Simões, não escondeu que é a favor da despenalização da eutanásia, mas também assumiu que será objector de consciência. O dilema que diz enfrentar é este: é favor do direito de escolher, mas não quer ser ele a fazê-lo (a não ser em “situações pessoais”, com pessoas de quem gosta muito). Por isso, questionou: “Quem vai fazer? Em que condições?” Apesar de estar “totalmente convencido” de que não há alternativa senão avançar para a consagração desse direito, vê “com imensa dificuldade como é que isso vai ser posto em prática”.

Quanto à ex-ministra da Saúde Maria de Belém, mostrou-se favorável ao aprofundamento da autonomia de cada um para decidir que final de vida quer ter, mas o que trouxe para a discussão foi outra solução: a “sedação profunda até à morte”. “Tendo em atenção o contexto social e operacional e o facto de as directivas antecipadas de vontade em Portugal terem força obrigatória, podendo ser revogadas a todo o tempo, a decidir-se legislar sobre a matéria parecer-me-ia mais adequado e prudente que se optasse pela disponibilização, a quem o pretendesse, da sedação profunda até à morte”, disse, defendendo ainda que as questões sobre o fim da vida se relacionam com “o princípio da inviolabilidade da vida humana” que, por isso, “as soluções legislativas” devem ser “de consulta preventiva ao Tribunal Constitucional”.

O médico e especialista em Bioética Walter Osswald tem um pensamento diferente: não só defende que a autonomia não pode ser a base para uma legalização da eutanásia, como entende que “ninguém” tem o direito de dizer que uma vida não tem dignidade, e também lembrou que os médicos foram “treinados” para preservar e defender a vida. O público participou: houve quem defendesse que quer ter o direito de escolher como morrer, quem defendesse que se deve envolver mais os estudantes de Medicina na discussão…

Ora é precisamente esta a discussão que o Presidente da República quer que se faça. “A minha posição é muito simples: não vou tomar nenhuma posição até ao final do processo, qualquer que ele seja. Só tomarei uma posição se tiver de tomar em termos constitucionais, se chegar a Belém um diploma, ou mais do que um, para promulgar. Até lá, nem uma palavra sobre a matéria, em substância. Apenas o apelo ao debate. Para não condicionar a liberdade de ninguém. Não faz sentido convocar e apelar a um debate e depois querer condicioná-lo. Por outro lado, para ficar de mãos livres para decidir em função do que me for apresentado”, disse, depois de ter aberto o ciclo de debates.

Independentemente do que venha Marcelo a decidir, o Bloco de Esquerda não vai desistir da causa da despenalização da eutanásia e suicídio assistido. Apesar de não comentar as declarações de Marcelo, que disse que iria ficar em silêncio até que lhe chegasse algum diploma a Belém, o BE vai continuar a trabalhar no projecto final para apresentar ao Parlamento. "O Bloco tem organizado debates públicos por todo o país. Com eles temos vindo a enriquecer a nossa proposta", afirmou ao PÚBLICO o deputado José Manuel Pureza.

O chefe de Estado elogiou ainda a iniciativa do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida que foi, apesar de tudo, criticado pelo PS e pelo Bloco de Esquerda por ter avançado com este conjunto de debates. Os partidos entendem que pode ser uma forma de condicionar o processo na Assembleia da República.

Mas Marcelo não tem a mesma opinião: “[O Conselho Nacional de Ética] organizou em muito pouco tempo debates em todo o país, daqui até ao dia 5 de Dezembro, continente e regiões autónomas, com tudo o que pode haver de especialistas e de profissionais, interessados numa matéria que é multidisciplinar, médicos, filósofos, juristas, psicólogos, sociólogos, representantes das associações ou organizações ligadas a esta matéria. Penso que isso é muito, muito importante para que os portugueses possam alargar o debate a nível nacional”.

Para já, não há ainda um calendário para o processo na Assembleia da República. Mas o debate já começou: o PAN apresentou um projecto de lei, o Bloco de Esquerda também tem um anteprojecto, mas promoverá debates até finalizar o documento. O Partido Ecologista Os Verdes deverá igualmente apresentar uma iniciativa e os deputados do PS têm luz verde para avançarem com projectos a título pessoal, se assim o entenderem.

A 1 de Fevereiro o tema esteve em debate no Parlamento e já nessa altura se percebeu que não é ainda uma questão pacífica. Nesse dia, enquanto dentro da Assembleia se discutia a petição Direito a morrer com dignidade, que pede a despenalização da morte assistida, lá fora, nas escadarias, manifestava-se o movimento cívico Stop Eutanásia.

O próximo debate do ciclo promovido pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida é no Porto, a 5 de Junho, e contará com Michel Renaud (professor catedrático jubilado de Filosofia, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e um dos fundadores do Centro de Estudos de Bioética de Coimbra,; Rui Mota Cardoso (professor catedrático da Faculdade de Medicina do Porto), Manuel Antunes (director do Centro de Cirurgia Cardiotorácica, de Coimbra), João Semedo (ex-coordenador do BE e dirigente do movimento Direito a Morrer com Dignidade) e Paulo Rangel (eurodeputado do PSD).

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