O consenso de regime não explícito

Como os fins estão a ser efectivamente alcançados, o partido no poder celebra um sucesso que é real, e meritório, mas que não foi obtido através dos meios que prometera.

A expressão feia e palavrosa que dá título a este texto não faz nada pela língua portuguesa, mas faz muito pela compreensão do novo ciclo da política nacional, protagonizado por António Costa e por Marcelo Rebelo de Sousa. David Dinis e Manuel Carvalho já recuperaram a expressão aqui no PÚBLICO, recuando a um discurso de 23 de Novembro do ano passado do Presidente da República, que na altura passou relativamente despercebido (desvantagens de se falar demais), na abertura da conferência Que Direcção para Portugal e a Europa?, promovida pelo Jornal de Negócios.

Nessa altura, Marcelo, numa espécie de balanço do estado do país, afirmou que tanto nas matérias de política financeira – sobretudo na relação das contas públicas com as regras impostas pela União Europeia –, como na resolução dos problemas do sector bancário, existia entre nós um “consenso de regime não explícito”, que se estava a revelar “fundamental para a sociedade portuguesa”. Esse consenso permitiu “integrar no sistema, ao menos num quadro conjuntural, realidades políticas que partiam de posições assistemáticas”. Que é como quem diz: permitiu à extrema-esquerda engolir uma austeridade que jamais teria aceitado quando estava na oposição.

Este “consenso de regime não explícito” é algo de profundamente cínico, ao mesmo tempo que se tem revelado profundamente útil para a manutenção de Portugal no caminho do ajustamento. O cinismo advém daqui: os partidos políticos propõem-se chegar a certos fins através da utilização de determinados meios. Só que os fins são, em geral, consensuais – mais prosperidade, maior crescimento, melhor vida para todos. Por isso, aquilo em que os cidadãos votam é nas diferentes formas que são propostas para lá chegar.

Ora, o que tem acontecido em 2016 e 2017 é isto: como os fins estão a ser efectivamente alcançados – redução do défice, diminuição do desemprego, crescimento da economia –, o partido no poder celebra um sucesso que é real, e meritório, mas que não foi obtido através dos meios que prometera. Junta-se a isto outro desconcertante paradoxo: se o PS tivesse anunciado por antecipação que iria fazer o que fez (cativações brutais, o mais baixo investimento público de que há memória, aumento dos impostos indirectos), o PCP e o Bloco nunca o teriam apoiado. Ou seja, por um lado, a mentira está a vencer, por outro, sem mentira não haveria vitória.

Eu não vi chegar isto à distância, e não sei se alguém viu. A direita não viu certamente – daí a trágica conversa do diabo, que pode muito bem ter comprometido a carreira política de Passos Coelho. Os partidos à esquerda do PS também não viram – tanto que a situação económica do país está a ficar demasiado positiva para o seu gosto. E duvido que o próprio António Costa tenha visto – ele é, sobretudo, um extraordinário negociador e um grande gestor daquilo que vai acontecendo. Costa, de facto, não perdeu apenas as eleições; ele também perdeu o programa político ao longo de 2016. Só que o seu pragmatismo sobrepôs-se a tudo isso, e os resultados estão à vista.

No meio de dez milhões de portugueses, talvez só mesmo Marcelo tenha compreendido as potencialidades da actual solução do governo, quando classificou o “consenso de regime não explícito” como um “consenso tácito”, “mais por aceitação, do que por actuação”. A descrição é perfeita. Marcelo conhece-nos bem: tal como as criancinhas, para abrirmos a boca temos primeiro de ser enganados acerca daquilo que está no prato.

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