O cinto, a mola e a queixa de um concurso feito à medida

A Motorola foi excluída e o Tribunal de Contas detectou "algumas irregularidades" na aquisição de terminais de rádio para o SIRESP. Director-geral do MAI foi acusado de 80 crimes.

Foto
A Motorola é accionista e uma das principais fornecedoras do SIRESP Daniel Rocha (arquivo)

Este é um processo cheio de argumentos sarcásticos, escondidos em linguagem processual-legal. Conta-se assim: a Direcção-Geral de Infraestruturas e Equipamentos do Ministério da Administração Interna (MAI) decidiu comprar 2600 terminais de rádio "e respectivos acessórios para utilização no SIRESP", em vésperas do Natal de 2013. Surgiram quatro concorrentes. Dois foram excluídos, entre os quais a Motorola, que é uma das empresas do consórcio privado que gere o sistema de emergência e segurança.

A proposta da Motorola era, até, a mais barata de todas (800 mil euros, contra os 1,268 milhões que o Estado acabaria por pagar à NEC, que venceu o concurso). Mas tinha um problema, assim descrito pelos serviços do MAI: "A solução proposta pela Motorola implica que, para se efectuar a transmissão física do ‘equipamento’ entre dois utilizadores, ambos tenham de desapertar e retirar parcialmente o cinturão para que, [vírgula no original] um deles possa retirar, [idem] e o outro possa posteriormente colocar, [idem] o referido ‘equipamento’, o que inviabilizará uma utilização simples e prática em regime de multiutilizador."

Esta passagem é fértil em vírgulas e imagens inusitadas, como a de vários bombeiros a desapertar cintos no meio de uma emergência. Mas foi o que alegou o MAI para excluir aquele concorrente do concurso. No fundo, continuam os inspirados serviços do Estado, era uma "exigência funcional" do caderno de encargos que os rádio-transmissores viessem com "um sistema simples e prático de colocar e retirar o cinto através de mola (clipe)", sempre sublinhando que os utilizadores deviam manter os seus cintos postos em todo o processo — "sem ser necessário retirarem os respectivos cintos", diz uma passagem sublinhada no circunspecto processo que recebeu um visto tácito do Tribunal de Contas, apesar de verificadas "algumas irregularidades".

A Motorola não se ficou. E respondeu no mesmo tom, com menos vírgulas e algum sarcasmo: "Desde logo, cumpre salientar que não existe qualquer definição (seja através de norma técnica, lei, regulamento ou documento concursal) do que se entende por mola ou clipe." Para a Motorola, o seu "clipe de cinto" era tão bom como o dos concorrentes e, sobretudo, nunca podia ser invocado como razão para a exclusão do concurso.

De nada valeu. A Direcção-Geral do MAI não acolheu o argumento. A Motorola apresentou uma providência cautelar no Tribunal Administrativo de Lisboa. O MAI invocou o prejuízo público para a capacidade de resposta aos incêndios e tudo ficou por ali...

O Tribunal de Contas questiona-se quanto "à legalidade da exclusão da empresa" e sublinha que "a proposta excluída apresentava um preço bastante inferior", e nas regras do concurso "o preço era ponderado em 50% e as características técnicas em 25%".

No processo do Tribunal de Contas está também uma outra queixa, da Moredis, empresa que nem sequer chegou a concorrer. Porquê? "Ao interpretarmos as características técnicas fundamentais exigidas, rapidamente concluímos que em sede das mesmas será difícil obter o mencionado equipamento." Como assim? A Moredis está a dizer que o concurso está desenhado à medida? "Arriscamo-nos mesmo a afirmar que o equipamento pretendido, face à rigidez das características técnicas apostas, impelem-nos a apontar que no mercado só haverá uma ou quiçá duas empresas que produzem este tipo de equipamento", lê-se, esclarecedoramente, no processo consultado no Tribunal de Contas.

O júri do concurso considerou que esta queixa era "extemporânea" porque devia ter sido apresentada quando foi conhecido o caderno de encargos. 

Mas tudo isto teve um epílogo, inesperado. No dia 26 de Dezembro de 2013, o director-geral do MAI, João Alberto Correia, assinava o contrato com a NEC. Seria um dos seus últimos legados. Em Abril de 2014 ser-lhe-ia decretada prisão preventiva ao ser acusado pelo Ministério Público de 80 crimes: 32 de corrupção passiva, 31 de participação económica em negócio, 12 de falsificação de documentos, quatro de abuso de poder e um de branqueamento de capitais. Na despacho de acusação lê-se que João Alberto Correia ultrapassava as "normas da contratação pública, da transparência e da livre concorrência" para, alegadamente, "beneficiar empresas, empresários [...] que pertenciam ao seu círculo de conhecimentos e com os quais mantinha uma relação de amizade e de troca de favores [...]".

Sugerir correcção
Ler 2 comentários