O bullying velado ao poder jurisdicional

iIquieta-me a facilidade com que, em Portugal, se procura lançar a dúvida, a suspeita ou suspeição sobre a imparcialidade e a independência das magistraturas.

1. As demissões dos três secretários de Estado por causa de um alegado recebimento indevido de vantagem, traduzido em viagens a jogos do Campeonato Europeu de Futebol de 2016, serviram mais uma vez para levantar fantasmas. Foram algumas, e bem audíveis, as vozes que se indignaram com o Ministério Público e com o seu zelo perseguidor de políticos. A que se soma mais um adiamento na apresentação da acusação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, que também relevaria de uma gestão acrítica do poder jurisdicional. Finalmente, tudo seria coroado pelo anúncio da greve dos juízes, supremo gravame corporativo, agora aprazado para os inícios de Outubro, precisamente para interferir com o apuramento do resultado das eleições autárquicas. Magistrados do Ministério Público e juízes estariam agora concertados para irritar e perturbar o poder político. No caso das viagens, corria-se mesmo o risco, a acreditar em alguma prosa destilada na última semana, de nos estarmos a aproximar do “governo dos juízes”.

2. A prosa e a prosápia que lhe vai associada mantiveram para já um tom baixo e lateral, mas vão fazendo o seu curso e cavando o seu sulco. A voz mais forte e desafinada foi, porém, a do Presidente da Assembleia da República que, inusitadamente e contra o dever de recato e de respeito pela função jurisdicional a que está constitucional e institucionalmente adstrito, resolveu comentar o acerto jurídico da actuação do Ministério Público. Algo que é especialmente bizarro, se não fosse grave. Em que outra democracia e Estado de Direito, com os quais nos gostemos de comparar, ocorre ao Presidente do Parlamento dar palpites sobre o bem ou o mal fundado de despachos de constituição de arguidos? Que, lembre-se, não implicam sequer qualquer acusação e que, no caso, até foram solicitados pelos próprios. É patente que o actual Presidente da Assembleia não soube honrar a tradição de rigorosa imparcialidade dos seus antecessores. São muitas as ocasiões em que deixa transparecer a sua preferência partidária e ideológica e em que conduz os trabalhos com evidente acrimónia para com os deputados que não apoiam a actual solução governativa. E nisso, destoa e destoa abissalmente dos seus antecessores. Mas enquanto está na pura gestão do múnus parlamentar, está ainda dentro de uma esfera em que se submete à publicidade crítica e a uma possibilidade (ainda que limitada) de contraditório. Agora, quando decide passar para a relação com os demais poderes do Estado, tudo se torna mais sério, mais denso e mais complexo.   

3. De há muito que escrevo sobre o poder jurisdicional, o estatuto dos magistrados e a função que jurisdição e magistraturas desempenham e vão desempenhar nas democracias do século XXI (e, em especial, se as pensarmos como democracias “poliárquicas” e “não territoriais”). Nos últimos anos, verdade seja dita, neste preciso espaço, não tenho tratado o tema, apesar de em diferentes colóquios e seminários, ter regressado a ele recorrentemente. Seja como for, inquieta-me a facilidade com que, em Portugal, por mera conveniência de partido e de conjuntura, se procura lançar a dúvida, a suspeita ou suspeição sobre a imparcialidade e a independência das magistraturas. E mais me inquieta ainda quando ela vem quase sempre dos mesmos sectores (e actores), que depois rasgam as vestes com as transformações da judicatura na Turquia e na Polónia ou até na Hungria.

4. A primeira palavra para a greve dos juízes. Não preciso aqui de mostrar pergaminhos: julgo ter sido dos primeiros, já em 2001, a considerar a greve uma contradição nos termos. A única coisa que poderia ser admissível – e só num quadro de risco para o regular funcionamento das instituições democráticas – seria uma acção destinada a defender a independência jurisdicional. Os juízes não são funcionários públicos, são titulares de órgãos de soberania. Por isso mesmo, questionei também sempre a possibilidade de “sindicalização” ou de constituição de uma “associação sindical”. Em todo o caso, e desde que passei por esta área no Governo, nos idos de 2004-2005, reconheço alto interesse prático, mesmo que teoricamente contestável, na existência destas organizações sindicais. Na verdade, a cristalização de alguns assuntos na esfera sindical permite que os Conselhos Superiores respectivos não sejam tomados por esse tipo de preocupações e assuntos, criando uma salutar divisão de esferas. Concedo, por isso, desde então, no papel útil e meritório das plataformas sindicais de magistrados, embora não possa em caso nenhum aceder ao reconhecimento de um direito à greve.

5. Dito isto, que não é pouco, choca-me de sobremaneira a tentativa de condicionamento e de acantonamento do poder jurisdicional. Ao contrário do que muitos pensam e escrevem, nas sociedades poliárquicas do século XXI, o papel do poder judicial vai crescer e aumentar. A grande questão, portanto, não é a de limitar e constranger o poder judicial, como procuram fazer a todo o transe os adeptos das democracias iliberais. A grande questão é compreender qual o seu papel e função em sociedades democráticas em que o poder político se “desterritorializa”. Com efeito, nestas sociedades a garantia da esfera liberal de direitos – os direitos mais ligados à pessoa, aí compreendidas as dimensões sociais – dependem mais da protecção judicial do que do voto. E, por isso, é fundamental compreender que a sobrevivência dos direitos fundamentais no novo espaço político está intimamente dependente de um fortalecimento do poder jurisdicional em sede de legitimidade e de responsabilidade.

6. A maioria dos comentadores, mesmo os ilustrados, continuam a viver sob o paradigma do velho Estado. Desconhecem as tensões multisseculares do judicial com o político, a origem teórica e histórica do governo dos juízes ou até um módico dos sobressaltos que viveu a Itália dos anos 90. Falam sem saber. Só porque dá jeito. Para defender os secretários de ocasião e quejandos.

SIM

Américo Amorim. Já se disse tudo sobre o carisma, o génio, a vontade indomável do empresário. Despretensioso e ligado à família. Pouco se disse do “tudo” que se aprendia e do “mundo” que se abria numa só conversa. 

NÃO

Pedrógão Grande. Passou um mês e a displicência continua. Na inexplicável falta de apoio às vítimas; na repetição de erros e falhas no combate a novos fogos.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários