O ADN da política portuguesa inscrito entre as aspas

Jornalista Luís Naves compilou mais de 1500 citações relativas aos últimos 43 anos e seis meses de má política - que foi mesmo o que tivemos, conclui.

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nuno ferreira santos

É um livro de não ficção e tem um final infeliz, que o autor advinha e não se importa de revelar já: “Os ciclos políticos acabam sempre da mesma forma. Não há dinheiro, acabou a massa”. Esta é apenas uma das tendências, dos padrões, que o jornalista e escritor Luís Naves identifica olhando para 43 anos e 6 meses de má política (Contraponto, 2017), livro em que reuniu mais de 1500 frases, de protagonistas bem conhecidos e de cidadãos anónimos, que marcaram ou sintetizaram a vida política nacional, desde o estertor do velho Estado Novo à actualidade. E foi a partir desse posto de vista privilegiado, a que ascendeu enterrando-se nos arquivos dos jornais e emergindo na História, que chegou à conclusão de que a política portuguesa é mesmo má.

“O que esta recolha mostra é uma forma portuguesa de fazer política que não é muito feliz, que não é bem conseguida. Fui-me apercebendo da existência de ciclos, curtos, que são sempre bastante catastróficos e desequilibrados. Têm euforia, negação da realidade e uma queda abrupta a que se segue um período de depressão horrível. Outros países conseguem passar pelos seus ciclos de forma mais normal”, avalia Luís Naves, ressalvando que o livro também contém frases de “boa política”, que servem de termo de comparação.

Outro problema que este conjunto de citações evidencia, diz o autor, é que “a nossa classe política não se renova muito”. “Se reparar bem, são sempre as mesmas pessoas, os políticos sobrevivem durante muito tempo. Na Alemanha, os políticos de hoje não têm nada a ver com os de há 20 anos”.

E há ainda uma terceira razão que leva Luís Naves a chamar má à política portuguesa. “É a incapacidade dos nossos políticos para enfrentarem os problemas. Dizerem o que pensam, com franqueza, não faz parte do sistema. Daí o estado de negação nos momentos difíceis. A franqueza é mal vista, a própria sociedade não gosta, acha-a uma brutalidade e prefere os rendilhados, uma forma de dizer as coisas um bocado mais ornamentada”.

Outro aspecto do “ADN da política portuguesa” inscrito nestas frases é, na opinião de Luís Naves, o “enviesamento para esquerda”, herdado da “retórica revolucionária”, de uma sociedade em que não se aceitam soluções de direita. “Mesmo com a maioria absoluta de direita, mesmo no cavaquismo, havia um ataque político feroz e uma retórica violenta, e a crítica às vezes baseava-se em coisas estranhas, como a ideia de que as pessoas não são da classe social certa – uma coisa do antigo regime que não desaparece: ‘cada macaco no seu galho’, ‘o filho do gasolineiro de Boliqueime’, ‘o rapaz de Massamá’, não nos livramos disto...”

Este é um livro que pouca gente lerá de um fôlego, ou de forma disciplinada. Tende a ler-se como se comem as cerejas: só queríamos três ou quatro, mas a seguir a uma impõe-se outra... Esta organizado por ordem cronológica e cada período tem um tema dominante que lhe serve de designação: “Estado de negação, Revolução, Verão quente, Constituição, Intranquilidade, Rumo europeu, Cavaquistão, Deixem-nos trabalhar, Pântano, Portugal de tanga, Método socrático, A caminho da bancarrota, Troika, Saída limpa, Geringonça”.

“Não há escolhas inocentes” assume Luís Naves em relação às frases que escolheu. “São o meu critério. São as frases a que achei graça, as que eram obviamente importantes, as que explicavam contextos. Há frases de espontâneos que resumem bem conflitos. Nós repórteres sabemos bem isso, às vezes há uma frase de um cidadão anónimo que vai ao âmago do problema sobre o qual a frase ornamentada de um político não diz nada”.

Outras vezes, a citação está lá porque o autor da frase veio a ser o que foi, Presidente ou primeiro-ministro. Ou porque fez uma profecia que se realizou e que veio até a ditar a sua intervenção. “Ninguém leu o artigo de Vítor Gaspar em 1993”, sobre a necessidade de correcção do desequilíbrio das finanças públicas.

Curioso é também comparar discursos do passado com os do presente. Ver, por exemplo, Carlos Carvalhas, um ex-secretário geral do PCP, partido ferozmente contra a supressão de feriados durante o mais recente período do resgate financeiro, a elogiar os “exemplos verdadeiramente revolucionários” dos trabalhadores que prescindiram de gozar o feriado do 10 de Junho de 1975. Ou António Costa, em 2009, a dizer que “o Bloco de Esquerda é um partido oportunista e parasita da desgraça” e Francisco Louçã a responder que era “uma honra Bloco de Esquerda ter sido transformado no principal adversário desse partido esponjoso [PS]”

Tambem há omissões no livro, avisa Luís Naves. Por exemplo, há frases de Pinheiro de Azevedo daquele Novembro de 1975, em que foi confrontado com manifestações e sequestros. Estão lá o

“é só fumaça, o povo é sereno” e o “não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia”, mas não a “bardamerda para o fascista”, com que respondeu aos manifestantes o invectivavam “fascista” e que o presidente do Sporting, o sobrinho-neto Bruno de Carvalho, glosou há dias com pouco sucesso, mostrando que o contexto conta muito.

Outras omissões não chegam a sê-lo. Não há sinal da frase “nunca me engano e raramente tenho dúvidas”, atribuída a Cavaco Silva, porque o do autor pura e simplesmente não a encontrou em lado algum, escrita por alguém que tivesse ouvido Cavaco a dizê-la. Outra frase tão célebre quanto polémica é a de Otelo Saraiva de Carvalho, em entrevista à Rádio Renascença, a 14 de Junho de 1975, reproduzida por Luís Naves: “Eu, às vezes, chegou a pensar que a nossa inexperiência revolucionária , enfim, teria sido melhor se, em Abril de 74, encostássemos à parede ou mandássemos para o Campo Pequeno umas centenas ou uns milhares de contra-revolucionários, eliminando-os à nascença”. Uma frase que Otelo não assume como sua. Em 19 de Abril de 2012 disse ao Expresso que o que tinha afirmado tinha sido “Oxalá que nós não tenhamos de meter no Campo Pequeno os contra-revolucionários antes que eles nos metam lá a nós”.

Esta dimensão de fact check, de confirmação e responsabilização histórica, reclamada ou concretizada pela mera publicação destas frases, é algo que, para Luís Nave, deixará de ser possível se, ou quando, acabarem os jornais impressos. “Estes livros vão ser impossíveis quando todos os jornais passarem a digitais. Teremos sempre várias versões de tudo, ‘factos alternativos’. O digital é fácil de manipular, em qualquer altura, e é fragmentado. No digital a memória está lá, mas é difícil de encontrar. Como saber quais foram as frases importantes de hoje daqui a dez anos sem os jornais impressos? Vamos ter um problema de memória, em que nos vamos lembrar do que aconteceu há 30 anos mas não ontem, uma espécie de Alzheimer informativo”.

De qualquer forma, Luís Naves não tem dúvidas quanto à forma como vai acabar o actual ciclo político. Como todos os outros, mal. E por falta de dinheiro. “Cada ciclo começa com uma ambição muito grande, dão-se passos maiores do que a perna. Chocamos com a realidade, temos que cortar, o entusiasmo acaba, vem uma tempestade de fora… Este ciclo não vai ser diferente”, profetiza.

 

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