Não se endireita

A prevalência total da esquerda – quer extrema quer moderada – na acção governativa em Portugal durante as últimas três décadas é a causa primeira e principal do deficiente e desequilibrado desenvolvimento.

A ironia dificilmente poderia ser maior ou mais simbólica: o Partido Socialista aliou-se ao Bloco de Esquerda e ao Partido Comunista Português para reprovar, na Assembleia da República, o programa do XX Governo Constitucional – e, logo, na prática demitindo aquele de funções – a 10 de Novembro (de 2015), dia do nascimento de Álvaro Cunhal (em 1913). Mais, fê-lo em Novembro, mas não num Novembro qualquer: no dos 40 anos do (falhado) levantamento militar (radical) de 25 de Novembro de 1975, que assinalou então o fim do denominado “Processo Revolucionário em Curso” iniciado a 25 de Abril de 1974 e acelerado a 11 de Março do ano seguinte, e também da ruptura do PS – liderado por Mário Soares – com as forças político-partidárias à sua esquerda. Seria de pensar que essa ruptura fosse definitiva, mas, quatro décadas depois, o PS – liderado por António Costa – promoveu uma “reconciliação” com bloquistas e comunistas – isto é, com trotskistas e estalinistas – que se traduziu numa maioria parlamentar que elegeu o novo (o XXI) governo, chefiado pelo ex-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.   

O ex-”número dois” de José Sócrates será sempre um “primeiro-ministro com asterisco”. Chegou ao cargo depois de ser derrotado em eleições legislativas (a 4 de Outubro), uma novidade em Portugal e algo de muito raro em todo o Mundo. Nunca houve no nosso país uma tão grande desproporção entre percentagem de votos e mandatos de deputado (32,3% e 86, respectivamente) e os resultantes números de ministros e de secretários de Estado (17 e 41, respectivamente), que faz deste executivo o maior na história da Terceira República. Aliás, o XXI Governo é ainda mais minoritário do que o XX, que gozava do apoio de 107 deputados. Se formal e legalmente a sua validade é indubitável, ética e politicamente não tem legitimidade, e não só porque é formado exclusivamente por um partido que não venceu o prévio escrutínio eleitoral: também porque a maioria parlamentar absoluta negativa que derrubou o executivo de Pedro Passos Coelho e de Paulo Portas não se reflectiu positivamente na constituição do seguinte. BE e PCP, por cinismo ou cobardia (ou ambos), estão em simultâneo com “um pé fora e um pé dentro” do poder, assim confirmando, como se tal fosse necessário, a adolescência permanente, a imaturidade e a irresponsabilidade da extrema-esquerda, o seu medo de assumir responsabilidades e de tomar decisões… para assim não prejudicar(em) a sua imagem e o seu “prestígio” enquanto força(s) de protesto.

O que não quer dizer, obviamente, que não detenha(m) uma influência efectiva e elevada: o próprio António Costa admitiu que, politicamente, é como um autêntico refém quando afirmou no hemiciclo de São Bento, a 2 de Dezembro, durante o debate do programa do seu governo, que “o que o PCP não está disponível para apoiar é o que nós não estamos disponíveis para propor.” É de supor que a disponibilidade se estenda igualmente ao BE… É uma posição periclitante e mesmo patética? Sim, é, mas trata-se do inevitável preço a pagar pela arrogância de querer e conseguir substituir o anterior secretário-geral do PS por este ter obtido não uma, não duas mas sim três vitórias eleitorais (regionais nos Açores, europeias e autárquicas) consideradas insuficientes e, depois, o novo secretário-geral ter obtido não uma mas sim duas derrotas eleitorais (regionais na Madeira e legislativas)… indubitavelmente insuficientes. É a consequência da hipocrisia de afirmar que “palavra dada tem de ser palavra honrada”… e não a honrar (porque continuou, mesmo que por pouco tempo, a política de austeridade precedente), de criticar a criação de uma “crise política artificial”… e criar não uma mas sim duas (no partido e no país). Porém, não há qualquer motivo para espanto: afinal, está-se a falar da pessoa que (re)introduziu a expressão “ética republicana” no léxico – e no anedotário – político nacional, “ética” que, agora todos sabem, significa dizer e fazer tudo o que for preciso para obter e manter o poder…

… E que implica, igualmente, afrontar regularmente os outros partidos, a Presidência da República – quando esta não é ocupada por alguém proveniente do Largo do Rato – e o poder judicial. Quanto a este, o Partido Socialista tem uma longa e lamentável “tradição” que, evidentemente, não se restringe às peripécias protagonizadas pelo ex-preso Nº 44 do Estabelecimento Prisional de Évora. António de Almeida Santos, ex-presidente do PS, ex-ministro e ex-presidente da Assembleia da República, afirmou que “para os amigos tudo, para os inimigos nada, aos outros aplique-se a lei”. Eduardo Ferro Rodrigues, ex-secretário geral do PS, ex-ministro e actual Presidente da Assembleia da República, afirmou que “(es)tou-me c*g*nd* para o segredo de justiça”. José Vera Jardim, ex-ministro da… Justiça (!), afirmou que José Sócrates tinha, tem, o direito de desrespeitar a Lei “porque os deveres legais cessam também perante outros direitos das pessoas, o direito ao bom nome, à reputação e a defender-se”. Não é de surpreender que Maria de Lurdes Rodrigues defina como “regresso à normalidade” o regresso do PS ao governo, mesmo que imerecidamente, e a “normalidade” também passará, quiçá, por a ex-ministra da Educação ter sido, entretanto, absolvida (juntamente com João Baptista e João Pedroso) do crime de prevaricação de titular de cargo político pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão cuja relatora, a juíza desembargadora Maria José Machado, foi sancionada – com uma advertência, a mais leve das acções disciplinares – em 2013 pelo Conselho Superior da Magistratura por ter violado o Estatuto dos Magistrados Judiciais ao participar na campanha eleitoral do PS para a Câmara Municipal de Albufeira… apoiando o seu marido, Fernando Anastácio, então candidato àquela autarquia e actualmente deputado. 

Na verdade, tudo aponta para que, novamente, e recordando o que Jorge Coelho disse em 2001, “a partir de agora quem se meter com o PS leva!” O seu camarada Augusto Santos Silva, que neste governo de António Costa é outra vez ministro (desta feita, dos Negócios Estrangeiros), renovou-reformulou-especificou o “credo socialista nacional” em 2009 afirmando que “eu cá gosto é de malhar na direita”. Mas qual “direita”? Supõe-se que se referisse ao PSD e ao CDS… mas, em rigor, o primeiro nunca foi de direita e o segundo não o é desde 1998, quando Manuel Monteiro deixou de ser o seu líder – além de que o posterior percurso político de dois dos fundadores, Diogo Freitas do Amaral e Basílio Adolfo Horta, apenas adensa a dúvida quanto à consistência programática inicial. Enfim, a prevalência total da esquerda – quer extrema quer moderada – na acção governativa em Portugal durante as últimas três décadas é a causa primeira e principal do deficiente e desequilibrado desenvolvimento que aquele demonstra. E, em última análise, a responsabilidade disso cabe, obviamente, aos eleitores, renitentes em darem maioritariamente os seus votos a propostas verdadeiramente alternativas. Decididamente, este país não se endireita.

Jornalista e escritor

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