António Guterres, onze anos depois

É mais do que uma biografia, é um registo reflectido sobre uma época. Ora em traços largos, ora em pormenor, Adelino Cunha conta a história política recente de Portugal. O pretexto é a vida política de Guterres.

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Só no final do Verão se saberá o futuro de António Guterres Daniel Rocha

"Guterres tinha prometido voltar ao asilo 28 e Maio depois das eleições de Dezembro de 1993 e cumpre a promessa no mês seguinte. No alto de uma colina no Porto Brandão, o prédio decrépito torna-se num símbolo da miséria humana à porta dos grandes centros urbanos. ‘Dificilmente se encontrará em Portugal um sítio onde a dignidade humana esteja tão espezinhada’, lamenta Guterres." (p.350)

O discurso humanista, proferido num quadro de miséria - exposto no regresso ao lugar de campanha eleitoral, depois da vitória autárquica, destapando uma ferida social que afinal continuava a existir debaixo do oásis do cavaquismo -, é o traço da diferença na maneira de fazer política que têm caracterizado António Guterres ao longo da sua vida política e cívica, a qual surge retratada na obra António Guterres - Os Segredos do Poder, da autoria de Adelino Cunha, editado pela Alêtheia.

O pretexto é a biografia política do antigo primeiro-ministro (1995-2002), líder do PS (1992-2002), várias vezes deputado à Assembleia da República e actual Alto-Comissário nas Nações Unidas para os Refugiados. O resultado é um retrato de uma época, feito ao longo de 582 páginas, com uma dinâmica de escrita que prende, mesmo quando o autor decide abordar minuciosamente as polémicas que opuseram protagonistas políticos. Uma precisão: a maioria das falhas que foram apontadas, não se confirmam na leitura da obra.

Adelino Cunha partiu para esta obra, depois de fazer o seu livro A Ascensão ao Poder de Cavaco Silva (2005). "Quando fiz o livro sobre Cavaco tinha o projecto de fazer um livro sobre Guterres, mas, entretanto, quando o fazia, surgiu o convite da Esfera dos Livros para fazer o livro sobre Álvaro Cunhal [Álvaro Cunhal - Retrato Pessoa e Íntimo (2010)] e, para isso, parei este projecto", explica ao PÚBLICO.

Na primeira fase, até 2008, ficou preparado "o corpus documental", explica Adelino Cunha ao PÚBLICO. Uma investigação a que somou trinta entrevistas com alguns dos protagonistas de diversos momentos da vida de Guterres, feitas ao longo de 2007, mas também, é evidente com o próprio ex-primeiro-ministro. Mais recentemente, na fase de finalização, investigou os períodos subsequentes. A liderança do ACNUR e ainda uma projecção no futuro: "A última pergunta que lhe fiz foi sobre a candidatura a Presidente da República."

O autor revela ainda alguns segredos da sua empreitada, que foi feita em diálogo com o biografado. "O método foi ir fazendo os conteúdos e mandar para Guterres para ele os comentar", explica, em jeito de resposta implícita ao facto de Guterres ter feito uma declaração escrita afirmando não se rever na obra.

Confessa estar ciente de que no resultado final pesa o facto de ter feito a investigação e as entrevistas em 2007. "Se as entrevistas tivessem sido feitas depois, seria outro livro. Hoje, não falariam assim. Mesmo a resposta que Guterres dá sobre a sua sucessão, quando ele diz que indicaria José Sócrates, é preciso ver que na época em que ele me diz isto, Sócrates era primeiro-ministo", assume Adelino Cunha, referindo as declarações que Guterres lhe prestou sobre a sua demissão em Dezembro de 2002 e sobre o facto de não ter aceitado satisfazer o pedido do Presidente Jorge Sampaio para que o PS nomeasse um sucessor: "Se eu concordasse com indigitações teria proposto naquele momento José Sócrates para me suceder como primeiro-ministro, mas era preciso haver eleições no PS e no país." (p. 567-8)

Se o livro conta a história de vida pública e política de Guterres, fá-lo no que é a reconstituição pormenorizada das épocas abordadas. É assim possível perceber o contexto da evolução de Portugal nos últimos cinquenta anos, através da retractação feita do ambiente dos jovens intelectuais antes do 25 de Abril e sobretudo do que é a história não só do PS, mas também do PSD e do CDS.

É a imagem de um ser racional, que calcula cada passo com prudência e sem se deixar levar pelo entusiasmo dos holofotes que é apresentado. Vemos reconstituído - pelo próprio e por vários dos que com ele viveram esses momentos -, o percurso do jovem brilhante estudante do Instituto Superior Técnico. Mas também do activista da Juventude Universitária Católica, que se destaca, antes do 25 de Abril, nas acções de apoio às vítimas das Cheias de 1967 (p. 54), é e namorado por organizações como a Opus Dei, cujas acções de formação e retiros frequenta (p. 33 ss.), ou a Assistência Social da Mocidade Portuguesa (p. 63 ss.). E o membro do Grupo da Luz, bem como o dirigente da Sedes e o fundador da DECO.
 
"Em estado de choque"
A história de militante político é o prato principal desta obra. António Manuel de Oliveira Guterres, nascido a 30 de Abril de 1949, na freguesia de Santos-o-Velho, em Lisboa, entra no PS pela mão de António Reis. É impressionante a capacidade, a segurança e a discrição com que Guterres construiu uma carreira política. Primeiro, junto ao grupo do Secretariado, liderado por Salgado Zenha, no combate a Mário Soares, líder-fundador que o afasta até do Parlamento. Depois, no apoio a Vítor Constâncio. E ainda a Sampaio. Sempre como o responsável pela organização, que é como quem diz, como o homem que domina a máquina do partido.

Até que, em 1991, Sampaio ficou submerso pela segunda maioria absoluta de Cavaco e Guterres proclamou: "Estes resultados deixam-me em estado de choque." (p. 322) Começa então a ascensão partidária que o levará a liderança do PS e do Governo da Nova Maioria, que marcará o país, com o seu discurso e acção social. Pelo livro passam as apostas em medidas como o Rendimento Mínimo Garantido (p. 349) ou a Paixão da Educação (p. 364). Uma ascensão assente em moderno marketing político. "As pessoas estão primeiro", é uma das frases de propaganda, a que se segue: "Os portugueses não são um negócio, são pessoas e Razão e Coração" (p. 346).E em que o PS rompeu as paredes do partido e comunicou com a sociedade para construir a "Nova Esquerda" nos "Estados Gerais".

Um percurso construído também internacionalmente, com o brilho da adesão ao euro, com o chapéu-de-chuva ideológico da Terceira Via e com o apoio de Bill Clinton e Tony Blair (p. 486). E que passa pela Estratégia de Lisboa (p. 506) e pela independência de Timor (p. 488), levando a que seja equacionado o seu nome para presidir à Comissão Europeia, convite que recusa, devido à morte da primeira mulher (p. 501 ss).

Os seis anos de governação são recordados em conjunto com a acção das oposições e dos Presidentes Soares e Sampaio. Incluindo uma pormenorizada enunciação do desgaste dos últimos dois anos, falhada que foi a conquista da maioria absoluta em 1999. Em congresso, António Vitorino desafiara Guterres a pedir uma "maioria inequivocamente absoluta". Na campanha para as legislativas de 1999, Guterres apenas pede uma "maioria absolutamente inequívoca". (p. 466) Com 115 deputados, o poder dos socialistas foi-se esbroando em sucessivas crises, dos Orçamentos Limiano (p. 523 ss.) à Taxa de Alcoolémia (p. 546).

A obra de Adelino Cunha traça as várias facetas de uma vida em interacção com o seu contexto histórico. Mas tem presente que a história de Guterres não acabou. É por isso que o autor não deixa de lembrar o pedido de desculpas público que o ex-primeiro-ministro fez em entrevista à televisão em finais de 2012 - o único antigo chefe de Governo a fazê-lo até hoje em Portugal: "Todos aqueles que exerceram funções em Portugal têm uma responsabilidade no facto de nós, até hoje, ainda não termos sido capazes de ultrapassar esses défices tradicionais, essa incapacidade tradicional para competir em plano de verdadeira igualdade com os nossos parceiros, nomeadamente no quadro europeu." (p. 447)
É já em nome do futuro e tendo implícitas, sem as nomear as eleições presidenciais, que Adelino Cunha assume, na introdução: "Falta apenas dizer mais isto: quando confrontado com a pergunta ‘admite regressar à política em Portugal?’, a resposta foi clara naquilo que tem de incerto: ‘Neste momento tal hipótese não me passa sequer pela cabeça.’ Neste momento, obviamente." (p. 14)
 

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