Não basta lembrar Mário Soares

Conheci Mário Soares aos catorze anos, quando das visitas de natureza política que fazia a meu Pai, e acompanhei logo desde então, através do MUD Juvenil, o combate contra a ditadura que incansavelmente desenvolveu. Desse percurso nasceu uma amizade de toda a vida que não excluiu divergências ideológicas, diferenças de opinião e momentos mais tensos, mas que deixou intactos esse afecto e admiração.

É-me por isso difícil aceitar a perda de alguém que me habituei a considerar presença constante na minha existência, como prova viva de que a luta pela liberdade e pela justiça é um dever indissociável da nossa própria dignidade.

Mário Soares tinha cinco qualidades fundamentais – coragem física, clareza de objectivos e valores, determinação, visão tolerante do mundo e sobretudo inesgotável optimismo e alegria de viver.

Coragem demonstrada na resistência ao Estado Novo e nas prisões, mas também na oposição às derivas totalitárias após o 25 de Abril. Coragem ainda na forma como exerceu o cargo de Presidente da República e participou no processo de descolonização.

Essa coragem é tanto mais de salientar quando é certo que sempre se destacou da atmosfera, recorrente em Portugal, geradora em tantos de uma suave cobardia, vestida com a capa da prudência, em que o conformismo se disfarça de razoabilidade, mas no fundo traduz um medo servil perante qualquer firme tomada de posições. País com uma tradição de ortodoxias transitórias e adaptáveis e onde, ao longo da História, as pseudo-elites raramente estiveram à altura das suas responsabilidades, agarradas a privilégios, esquecendo que o seu estatuto lhes impõe sobretudo deveres – o privilégio gera o dever mas o dever nunca pode gerar o privilégio.

A sua acção foi sempre guiada por princípios relativamente simples. Mário Soares nunca foi um doutrinário nem um ideólogo. Bateu-se desde a juventude pelas mesmas ideias com coerência e determinação, podendo aplicar-se-lhe o dito de Vigny de que uma grande vida é apenas um pensamento da juventude executado na idade madura.

Nunca pretendeu fazer a refundação da República no sentido que lhe deu Robespierre, mas antes criar as condições de autonomia individual que permitam o estabelecimento do equilíbrio possível entre liberdade e igualdade. Para ele, a revolução era menos o sinal de algo que começa do que a constatação daquilo que acabou, e sempre entendeu que qualquer projecto abstracto de sociedade só pode conduzir à intolerância ideológica, pelo que a revolução é a concretização de uma necessidade, não a intervenção determinista de um futuro, e menos ainda o resultado de uma concepção da História. O caminho faz-se através de uma luta permanente, sempre inacabada em que, se a ideia da liberdade deve guiar a acção, só a acção faz merecer a liberdade. Essa liberdade deve ser total, impedindo que se imponha a democracia, muito menos pela força, tal como não se impõe a felicidade alheia. Por isso um projecto nacional não pode ser nunca a aplicação mecânica de uma doutrina fechada. Pelo contrário, são a mobilização e a participação colectivas que permitem a eficácia da doutrina como forma de excluir o pior dos perigos que é a existência de uma eficácia sem doutrina.

O esquema de pensamento de Mário Soares era realista. Se a ditadura assenta na força sem justiça, a democracia não sobrevive com uma Justiça sem força. Se a ditadura implica a mediocridade, a democracia exige grandeza e tolerância.

Soares recusava as utopias no plural, mas não a utopia. Não se tratava de criar uma sociedade imaginária de contornos pré-definidos, nem de considerar o seu advento como resultado inelutável de um processo histórico. Se assim fosse, o poder – qualquer poder – transformaria a hipotética felicidade enfim realizada numa peça essencial dos mecanismos que garantem o imobilismo social, levando à reprodução do sistema com inevitáveis derivas totalitárias.

Para ele, qualquer geometria nítida da ordem social constituía um freio à imaginação, condenando ao estrangulamento da liberdade e à promoção da ortodoxia. Daí, que a única utopia pudesse ser a da criação de um quadro que assegure o exercício da responsabilidade cívica como base insubstituível de intervenção num espaço democrático não limitador do sonho.

E que, além disso, permitisse como tarefa permanente, articular as divisões sociais, políticas e culturais que fazem parte da essência da democracia. Só assim será possível redefinir a sua continuidade através de transformações mas também de rupturas quando necessário. Mais importante do que procurar estabelecer um resultado final, sempre historicamente imprevisível, é o constante debate político e cívico por valores que fazem parte da consciência colectiva. O entendimento de que o consenso constitui a negação da democracia, levava Mário Soares a ter uma visão tolerante da acção política. Tolerância que no entanto ele sabia não poder abdicar de exigência num país em que a maioria é constituída por crentes que não praticam, cidadãos que não exercem e democratas que não lutam.

O seu optimismo levou-o durante um período relativamente longo a desvalorizar a importância dos crescentes sinais de perigo e de risco, de carácter global, que se acumulam no mundo de hoje.

Com o seu instinto infalível, voltou mais tarde a sentir a necessidade de intervir de novo e fê-lo com a mesma determinação de sempre. Denunciou frontalmente as ameaças do actual período de transição e de incerteza, gerador de desequilíbrios nas relações entre países, potenciador de metódicas tentativas de destruição do Estado social e caracterizado no caso europeu pelo aparecimento de forças desagregadoras e pretensas doutrinas hegemónicas assentes na noção idiota do fim da História.

Creio que a explicação da durabilidade e intensidade da acção política que desenvolveu está numa palavra – cultura.

Cultura, como conhecimento e compreensão dos valores e da produção intelectual do país.

Cultura, como capacidade instintiva de sentir aspectos profundos do carácter português que levou muitos a vê-lo como um denominador comum.

Cultura, finalmente, como expressão genérica, historicamente característica de uma atitude de esquerda – nas palavras de Yves Citton, “uma cultura que põe em causa os códigos preexistentes; que procura revê-los para os adaptar, não apenas a novas circunstâncias, mas sobretudo a novas potencialidades imagináveis no interior dessas circunstâncias; cultura que valoriza os saltos (revolucionários ou reformistas); cultura que corre os riscos do desconhecido, apostando em hipóteses visionárias, sem se limitar apenas ao horizonte mutilador dos saberes estabelecidos”.

O seu exemplo é o seu legado, e não pode ser esquecido – a ideia de que nada é irreversível, nada está definitivamente conquistado, nada está definitivamente perdido, desde que se mantenha a luta.

Foram essa visão do passado e antevisão do futuro que o levaram a criar a Fundação que leva o seu nome, onde estão reunidos dados e testemunhos únicos.

Trata-se de um arquivo insubstituível onde estão conservados registos do Portugal do séc. XX, mas também das antigas colónias e de várias zonas do mundo, assim como vasta memória da nossa vida cultural.

O desaparecimento de Mário Soares obriga à perpetuação dessa obra de interesse coletivo, pelo que lhe devemos que a Fundação se mantenha como a concebeu e o seu acervo seja urgentemente protegido, tarefa a que o Estado não pode furtar-se e a que a sociedade civil deve estar atenta.

Não basta lembrar Mário Soares. Devemos ser dignos daquilo que foi e dos valores por que se bateu, independentemente de convicções pessoais.

 

 

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