Muito mais do que o Presidente da selfie

É por esse passado e pelo seu perfil enquanto líder político que é possível prever que Marcelo venha a inovar, fazendo uma leitura nova dos poderes do Presidente.

arcelo Rebelo de Sousa fez uma campanha eleitoral em que voltou a romper a fronteira na mediatização política em Portugal. Se em 1989 mergulhou no Tejo, guiou um táxi e recolheu o lixo num carro da câmara, agora conversou com os portugueses nas ruas, deu atenção personalizada, e até penteou uma cabeleireira. Saber mediatizar-se é-lhe natural. Numa eleição ganha à partida pela relação de confiança com os portugueses que construiu ao longo de anos na tv a desmontar a política para o povo perceber, Marcelo apenas teve de fazer politicamente de morto, gerir afecto, saber ouvir, saber conversar. E, claro, não aflorar sequer a sombra de uma ideia. Ele estava acima dos outros candidatos. Ele falava directamente ao coração das pessoas. Ele era o ombro amigo de uma sociedade cansada dos disparates que os políticos fazem. Ele era o amigo que domingo à noite ajudava a diminuir a ansiedade sobre a crise e a criar força para enfrentar a semana.

O facto de ter feito uma campanha redonda, sem uma ideia que servisse de aresta em que alguém agarrasse e o travasse no caminho para a vitória, não quer dizer que ele não tenha ideias políticas. O Presidente eleito tem ideias políticas, tem uma ideia de país, tem um percurso claro e obra feita na política. É por esse passado e pelo seu perfil enquanto líder político que é possível prever que — perante as condições políticas complexas que se anunciam para o país, para a União Europeia e para a Europa — venha a inovar no cargo de Presidente da República, fazendo uma leitura nova dos poderes que a Constituição atribui ao primeiro órgão de soberania. E vá ser muito mais interventivo e mais presente do que qualquer antecessor.

António Costa percebeu isso. Daí ter anunciado a disponibilidade do Governo para que o Presidente se reúna periodicamente com os ministros dos Negócios Estrangeiros da Defesa e da Segurança Interna. As duas primeiras por razões óbvias, o Presidente tem a sua diplomacia própria e é o comandante Supremo das Forças Armadas. A Segurança Interna surge como obrigatória perante o crescendo do terrorismo. Mas é possível que Marcelo venha a multiplicar esta inovação.

É expectável que ele continue a misturar-se e a estar perto do povo, em formas que o cargo lhe permita e que terá de criar para si. E isso será até facilitado pelo facto de Marcelo ser o mais institucional dos presidentes pós-democracia. O institucionalismo é em Marcelo uma segunda pele, ele nasceu e respirou sempre um ambiente institucional, nisso foi determinante a figura do seu pai, Baltasar Rebelo de Sousa, governador de Moçambique e ministro de Marcello Caetano. É por ser tão institucional que consegue e pode ser irreverente, sem nunca chocar ou provocar as instituições. Além de profundamente institucional, é um político do sistema — é, aliás, um dos seus fundadores. Foi constituinte e foi ele quem negociou e determinou a última grande revisão constitucional, em 1997, com o seu amigo António Guterres, então primeiro-ministro e líder do PS, que agora leva para o Conselho de Estado.

Mas Marcelo vai inovar na leitura que fará dos poderes presidenciais e no modelo de Presidente e vai ser mais interventivo, porque lhe está na massa do sangue. Ele é um controlador, quer saber tudo, determinar tudo, estar em todas as soluções. Mostrou esse perfil quando foi líder do PSD entre Março de 1996 e Maio de 1999. Delegava, mas dirigia e controlava. E foi a sua persistência que levou a cabo uma das poucas reformas feitas no sistema partidário português. Foi ele quem limpou os ficheiros do PSD de mortos e ex-militantes, fez a refiliação e, principalmente, introduziu regras transparentes no que toca ao pagamento de quotas, abrindo a porta à possibilidade de fiscalização do financiamento dos partidos.

Um mandato como líder do maior partido da oposição em que politicamente ganhou tudo o que havia para ganhar. Impôs conteúdos constitucionais que o PSD almejava desde Sá Carneiro: o referendo nacional e a possibilidade de um limite mínimo de 180 deputados no Parlamento. Impôs que a regionalização seja referendada, negociou o referendo à lei do aborto então aprovada (1997). Ganhou ambos os referendos, atrasando a despenalização do aborto por uma década e enterrou a regionalização. O clima no PSD era de que o despique com Guterres nas legislativas de 1999 seria árduo, mas a sério. Uma batalha em que Marcelo foi travado pela iminência do caso Moderna e o envolvimento do nome de Paulo Portas neste escândalo. Isto pouco depois de Marcelo ter tido êxito na dificílima tarefa de convencer o PSD de então a fazer uma coligação pré-eleitoral com o CDS, à época recém-liderado pelo ex-director de O Independente.

É o perfil e o passado de Marcelo, e o momento que o país atravessa e que vai viver na próxima década, que permitem afirmar que Marcelo será muito mais do que "o cromo" da tv ou o Presidente da selfie.

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