Entrevista

"Muito antes de haver um problema de dívida pública em Portugal já havia um seríssimo problema de dívida privada"

Este professor de Economia do ISEG, que coordenou, até 2014, o Núcleo de Estudos e Avaliação do Observatório do QREN e dirigiu o gabinete de Análise Económica e Previsão do Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia e da Inovação, defende que só com crescimento se pode resolver o problema da dívida privada. "Enquanto insistirmos em forçar a poupança do Estado num contexto em que as famílias e as empresas estão a poupar para pagar dívidas passadas, o resultado é a estagnação económica, que não resolverá nenhum problema de endividamento."

O Governo da Croácia criou legislação para eliminar uma parte da dívida privada aos cidadãos. Em Portugal podia, ou devia, ser considerada uma medida semelhante?
Existem na lei portuguesa mecanismos que permitem lidar, de alguma forma, com situações deste tipo – estou a pensar no procedimento de insolvência individual e no pedido de exoneração do passivo restante. Nestes casos, não há uma eliminação imediata das dívidas, mas ela pode acontecer, caso se verifique que não há capacidade de pagamento por parte dos indivíduos. O princípio parece-me equilibrado, mas não conheço nenhum balanço exaustivo da implementação destas medidas.

Esta reestruturação de dívidas pode ter algum efeito positivo na economia?
Tanto quanto percebo, a medida em causa na Croácia visa pessoas com rendimentos muito baixos, que não têm propriedades nem poupanças, e que contraíram dívidas de valores modestos. Assim, o seu impacto no conjunto da economia é necessariamente modesto.

E do ponto de vista social?
A eternização de dívidas das famílias e de pessoas individuais limita fortemente a possibilidade de uma vida decente. Na maioria das vezes, para que os segmentos mais pobres da população atinjam situações de dívidas sufocantes é preciso que haja falhas importantes na regulação dos mercados. Nessas circunstâncias, a eliminação das dívidas é uma medida adequada e justa. No entanto, o fenómeno só ganha grandes dimensões se as economias estiverem numa situação muito débil. Aí, mais do que eliminar a dívida das pessoas com menos recursos, o que realmente importante é relançar a economia e criar emprego.

Em Portugal quase não falamos da dívida privada e concentramos toda a atenção na dívida pública. Porquê?
Muito antes de haver um problema de dívida pública em Portugal já havia um seríssimo problema de dívida privada. No meu livro O Que Fazer com Este País procuro mostrar que os problemas orçamentais em Portugal são muito mais consequência do que causa da crise económica que se instalou em Portugal desde 2000. No entanto, faz parte da tradição dos partidos de direita atacarem o “despesismo do Estado” e fazerem disso a sua bandeira. Em Portugal houve más decisões orçamentais tomadas por vários governos, mas há outras más decisões que foram muito mais significativas para que chegássemos ao estado em que nos encontramos.

A estrutura da dívida privada portuguesa revela um peso muito grande do crédito à habitação...
O principal estímulo à aquisição de casa própria foi a queda acentuada das taxas de juro reais na segunda metade da década de 1990 e o aumento dos rendimentos reais da população no período. Existem outros factores relevantes – a estagnação do mercado de arrendamento, a escassez de uma política de rendas controladas para novas habitações nos centros urbanos, os benefícios fiscais à compra de casa própria – mas a evolução das taxas de juro foi o factor decisivo.

A existência de um problema de sobreendividamento resulta da expansão do crédito nos anos anteriores à crise?
Para se falar em sobreendividamento é preciso não só que o crédito aumente muito, mas também que o crescimento da economia seja insuficiente para que os agentes paguem as dívidas já contraídas. Isto passou-se em Portugal a partir de 2000. Na década de noventa o país passou por um processo sem paralelo de privatização e desregulação do sector financeiro, ao mesmo tempo que liberalizava os fluxos de capitais com o exterior. Isto conduziu ao maior aumento do crédito ao sector privado registado na UE nesse período. Chegámos ao ano 2000 com níveis muito elevados de endividamento privado. Como se não bastasse, o país sofreu uma sucessão de choques competitivos – comerciais, cambiais e energéticos – entre 2000 e 2008. É a combinação destes factores que explica o sobreendividamento privado antes da crise actual.

O sector financeiro nacional pedia emprestado aos bancos do Norte da Europa e reemprestava-o, a um preço mais alto, aos construtores civis, que faziam as casas, e às famílias, que as compravam. Isso agora terminou, ou voltaremos a correr o risco de uma bolha imobiliária?
Tecnicamente, não chegou a existir uma bolha imobiliária em Portugal. O ritmo de aumento dos preços do imobiliário ficou, apesar de tudo, muito aquém do que se passou na Irlanda ou em Espanha. Em qualquer caso, o risco de sobreendividamento privado é típico de economias onde o sector financeiro tem grande peso e está insuficientemente regulado. Infelizmente, essa situação não se alterou, ainda que a fragilidade dos balanços dos bancos portugueses não faça antecipar um novo surto de crédito em Portugal nos próximos anos.

No caso português, quais são as formas de ultrapassar o problema? Agir sobre o mercado imobiliário? Limitar a actuação da banca? Perdoar parte das dívidas hipotecárias acima de um determinado valor face à avaliação das casas.
A única via para reduzir de forma sustentável o problema do endividamento privado é pôr a economia a crescer. Daí que seja tão importante reverter a estratégia da austeridade: enquanto insistirmos em forçar a poupança do Estado num contexto em que as famílias e as empresas estão a poupar para pagar dívidas passadas, o resultado é a estagnação económica, que não resolverá nenhum problema de endividamento. Por motivos mais sociais do que económicos também é importante reforçar a regulação do crédito ao consumo, para evitar abusos por parte das instituições de crédito. Quanto às dívidas hipotecárias, defendo que as famílias que entregam as suas casas deveriam ficar automaticamente libertas da dívida perante os bancos, embora reconheça que a aplicação integral desse princípio no actual contexto criaria problemas financeiros difíceis de resolver.

O acesso a crédito barato ajudou também a manter uma "paz social" desde o final dos anos 90? Criando a convicção de que as famílias dispunham de recursos maiores?
Não diria que contribuiu para a paz social, na medida em que 3/5 da população não tem acesso a crédito e isto corresponde, em geral, aos segmentos mais desfavorecidos da população. Mas é verdade que o acesso ao crédito contribuiu para que grande parte da classe média assumisse como um dado adquirido que a economia portuguesa teria condições para continuar a crescer ao ritmo que se verificou até 2000. Hoje sabemos que não é assim.

A crise criou uma quase unanimidade em torno de se limitar a actuação do sector financeiro. Sete anos depois, essa limitação é real?
A economia mundial vive há oito anos o rescaldo de uma crise financeira sem precedentes, em resultado da desregulação e liberalização que vingou durante mais de três décadas. Tendo em conta os enormes custos económicos e sociais desta crise, é chocante o pouco que se fez para restringir o poder devastador da finança liberalizada. Houve algumas melhorias na regulação dos produtos financeiros, nas regras de supervisão e nos limites à alavancagem. No entanto, as forças que conduziram à crise financeira de 2007/2008 permanecem, fundamentalmente, intocadas.