Mário Soares

Registo a sua fome de vida e a sua vontade de entrega que se resumem em duas expressões: sede de liberdade, compromisso com a dignidade

A 8 de Fevereiro de 1993, corria a Presidência Aberta da Área Metropolitana de Lisboa, Mário Soares visitou o concelho de Oeiras (PÚBLICO, 09/02/1993). Foi a bairros sociais que o presidente da Câmara de Oeiras Isaltino Morais, do PSD, construíra e não fugiu a entrar no bairro clandestino de Santa Catarina, onde residiam imigrantes vindos sobretudo de países lusófonos, que entrava em fase de realojamento. Levado a cabo pelo Governo de Cavaco Silva, sob tutela do ministro da Administração Interna Dias Loureiro, estava a acabar um período de legalização de imigrantes que causou controvérsia pela dificuldade que os residentes ilegais tinham para se legalizar.

Perante a preocupação dos imigrantes com o risco de serem devolvidos aos seus países de origem, Mário Soares sobe para cima de um banco e, numa sala cheia e inquieta, anuncia o que o Governo ainda não divulgara: o período de legalização ia ser prolongado e haveria bom senso. “Nós vamos tratar disso com flexibilidade”, garantiu.

A emblemática Presidência Aberta de Lisboa decorreu de 30 de Janeiro a 14 de Fevereiro e serviu de marco na visibilidade dos problemas urbanísticos da região. Mas acima de tudo mostrou a grave situação social que viviam bolsas significativas da população, tendo mesmo o Presidente da República sido recebido na margem sul com manifestações com bandeiras negras da fome, que chocaram o país.

Antes de Oeiras, a 31 de Janeiro, Mário Soares dedicara o dia ao concelho de Loures (PÚBLICO, 01/02/1993). Acompanhado do presidente da câmara Demétrio Alves, do PCP, visitou diversos bairros sociais e encarou a praga dos bairros clandestinos que grassava então na região de Lisboa e que só seria resolvida anos depois com a adopção pelo primeiro Governo de António Guterres do “plano de erradicação das barracas”, como ficou conhecido.

Nessa noite, no Pavilhão de Loures, realizou-se um concerto. No palco, Pedro Ayres de Magalhães, dos Resistência e ex-Heróis do Mar, leu uma mensagem do Presidente da República. E as palavras de Mário Soares ecoaram como um murro na indiferença e no silêncio que ainda hoje persiste em fazer-se sentir em Portugal. “É tempo que Portugal faça ouvir a sua voz e diga não ao racismo”, proclamava a mensagem, considerando o Presidente ser o racismo “uma indignidade que diminui a condição humana, representa a outra face do medo, do egoísmo e da avidez”.

Perfazem quase 24 anos sobre estes factos. Hoje os problemas de habitação social estão muito minorados. A habitação clandestina diminuiu significativamente. A integração das comunidades imigrantes foi alvo de políticas específicas. Apenas o racismo permanece envolto numa nuvem ensurdecedora. Mas as palavras proclamadas então por Mário Soares continuam a ter uma força e uma actualidade imensas. São a demonstração do que foi a coragem de um “monstro político”, da sua capacidade de antecipação, a sua enorme intuição para rasgar caminhos.

Fê-lo em inúmeros momentos — por exemplo, em relação à construção da democracia e à integração europeia. Fê-lo quase sempre. Mesmo quando errou. Fê-lo com uma capacidade de liderança, uma coragem política e física, uma determinação, uma força e uma capacidade de transmitir convicção que surgiam aos olhos do mundo como uma forma de respirar, de viver, como algo natural — mas que surpreendia pela exclusividade, pela peculiaridade.

Muito há a dizer, muito tem sido dito e muito será certamente dito sobre Mário Soares. Quer agora, com todo o envolvimento emocional das gerações que tiveram o privilégio de viver as décadas da construção de uma sociedade democrática, quer no futuro, quando a história fizer as sucessivas leituras da sua acção. Mas, para mim, cuja vida foi em parte marcada pela admiração pela grandeza política de Mário Soares — mesmo quando crítica da sua acção — registo a sua fome de vida e a sua vontade de entrega que se resumem em duas expressões: sede de liberdade, compromisso com a dignidade.

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