Maria Luís Albuquerque, o dinheiro e a ética

É fácil imaginar situações onde o dever de lealdade de Maria Luís Albuquerque para com o povo português esteja em choque com o seu dever para com a Arrow.

1. Muitos órgãos de comunicação social têm, nos últimos dias, a propósito da contratação da ex-ministra Maria Luís Albuquerque pela empresa Arrow Global, colocado a tónica no salário que a deputada do PSD vai auferir nessa empresa por dois a quatro dias de trabalho por mês, que se irá somar ao seu ordenado como parlamentar. Esse valor parece ser (nem a ex-ministra nem a empresa o confirmaram) de cinco mil euros brutos por mês, a que se podem somar bónus e prémios, fazendo com que, segundo alguns jornais, a remuneração possa ascender a 100.000 euros por ano.

Os órgãos de comunicação social que põem o foco na quantia jogam, obviamente, no sentimento de injustiça e na indignação generalizada que o número, só por si, irá gerar numa população como a portuguesa, onde o desemprego, a pobreza e os baixos salários são a regra - circunstâncias que, diga-se de passagem, Maria Luís Albuquerque fez tudo o que pode para impor na economia portuguesa, a par de uma defesa moralista da austeridade, o que naturalmente exacerba agora o sentimento de repulsa popular. A tónica populista, contra “a política”, na linha “os políticos são todos uns corruptos e andam a viver à grande à nossa custa” que é feita por alguns jornais não é, por isso, de estranhar. No entanto, é errado dar essa importância ao salário em si, já que este não é, nem de perto nem de longe, o cerne da questão. O que é escandaloso e criticável não é de todo que Maria Luís Albuquerque vá ganhar muito dinheiro, mas sim a forma como o vai ganhar.

Se MLA tivesse recebido um adiantamento de um milhão de euros de uma editora para escrever um livro sobre a sua experiência governativa ou se tivesse assinado um contrato igualmente milionário para dar aulas numa universidade isso não levantaria a mínima questão ética e, portanto, não mereceria qualquer crítica - por muito espanto ou inveja que pudesse suscitar. E repare-se que ambas essas propostas, caso tivessem tido lugar, poderiam ter sido feitas (como a oferta da Arrow Global) com base na experiência governativa da ex-ministra.

Em termos abstractos, pode ser até visto como positivo que uma ex-governante tenha uma oferta de emprego particularmente bem remunerado, já que isso pode ser um reconhecimento de uma elevada competência técnica. O problema não tem nada a ver, portanto, com o valor deste contrato em si, que continuaria a suscitar dúvidas éticas mesmo que fosse feito pelo valor do salário mínimo.

2. O problema tem a ver, exclusivamente, com o facto de haver um potencial conflito de interesses e, portanto, uma incompatibilidade ética, entre 1) o facto de Maria Luís Albuquerque ser uma ex-governante da área das Finanças (ex-ministra e ex-secretária de Estado) e ir trabalhar para a Arrow Global escassos meses depois de sair do Governo e 2) o facto de MLA ser deputada da República e pretender trabalhar em simultâneo para a Arrow Global.

3. É provável que a Comissão de Ética da Assembleia da República não veja impedimento legal na acumulação por MLA das actividades de deputada e administradora da Arrow. E pode ser que a justiça não veja incompatibilidade entre o exercício desta função privada por MLA após uma tão recente cessação das funções governativas. Mas isso não significa que, de ponto de vista moral, essa acumulação ou essa sucessão sejam aceitáveis. De facto, é fácil imaginar situações onde o dever de lealdade de MLA para com um dos seus patrões (o povo português ou os accionistas da Arrow) esteja em choque com o seu dever para com o outro. É a isto que se chama conflito de interesses. Não é algo que se possa resolver garantindo que se irá desempenhar o seu cargo de forma escrupulosamente honesta. Trata-de da existência de situações onde a defesa dos interesses de um dos patrões se traduz forçosamente no prejuízo do outro - e não é difícil imaginar situações onde a Arrow e o estado português terão interesses conflituantes. Estas são as situações que um político honesto tem o dever de evitar, por muito que isso o/a prejudique do ponto de vista financeiro ou patrimonial. A existência de um período de nojo, neste tipo de situações, é aconselhável - porque a informação sensível a que MLA teve acesso como ministra e da qual poderá fazer beneficiar o novo patrão, tem um prazo de validade e, passado dois ou três anos, já não permitirá grande benefícios ilegítimos. Mas o período de nojo só resolveria o problema de MLA como ex-ministra e não o de MLA como deputada-administradora.

4. Percebo que MLA queira ganhar mais do que o seu ordenado de deputada. Considero que os deputados ganham pouco e penso que deveriam ser aumentados - apesar de a actual situação económica e social não o aconselhar neste momento. Ainda que não sejam os salários baixos que tornam os políticos corruptíveis, é evidente que um salário insuficiente pode incentivar um deputado a exercer outras ocupações remuneradas que prejudicam a sua actividade política. Mas há muitas actividades compatíveis com o trabalho parlamentar e que não suscitam problemas éticos. Bastaria ter essa preocupação.

jvmalheiros@gmail.com

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