Mão Morta

O punk/hard core pressupõe o incómodo, uma dimensão de protesto subjacente que chega a ser malcriado e é necessariamente refilão. O universo deste rock é prolífico em miúdos energizados pelas mais diversas injustiças. O facto é que, com a maturidade, o punk só assenta verdadeiramente a uns poucos. As cãs obrigam a argumentos, sob pena de todo o sentido se perder. Poucos miúdos, afinal, se salvam das drogas ou da falta de propósito. Sobrevivem as bandas que se estruturam, as que estruturam o protesto e o incómodo, e sabem a todo o tempo o que as leva a ser maldispostas, gente caminhando na fímbria delicada da contracultura. Assim são os Mão Morta: Adolfo Luxúria Canibal, Miguel Pedro Guimarães, António Rafael, Sapo, Vasco Vaz e Joana Longobardi. Enquanto colectivo, são um raríssimo exemplo em Portugal de longevidade e pertinência, feitos de muita política e literatura, feitos de muitas citações e originalidades. Os Mão Morta são os excelentes decanos do underground nacional, sempre tão fiéis a si mesmos como surpreendentes para o público.

Pelo Meu Relógio São Horas de Matar, o novo disco, é um combate à letargia. Uma incitação à cidadania em tempos de abuso de poder. Naturalmente concebido como resistência aos tempos da troika e de Passos Coelho, este disco é a narrativa que explica a raiva, o modo como o cidadão mais anestesiado pode, subitamente, assumir a luta, recusando permanecer instrumentalizado, aviltado nas suas mais legítimas expectativas. A explicação da raiva, ou a sua fundamentação, é exactamente o que valida a música violenta deste lado do rock. Já sabemos o que causa, teremos de justificar, no sentido de reconhecer a justiça, o efeito. O que os Mão Morta fazem é isso. Num plano conceptual e artístico, acusam o crime político e declaram o direito à defesa.

Nos tempos do politicamente correcto e da entropia informativa, alguém trazer uma mensagem tão feroz, sem rodeios nem moderações, apenas o desespero e a revolta, é admirável. O povo refila em todos os cafés e esquinas, refila sentado em todos os sofás e a cada cumprimento de bom dia, mas não se expressa assim. O povo apenas sente assim. Precisa que alguém ilustre o que o sistema não permite facilmente ilustrar.

Os Mão Morta não vivem de utopias. São comummente vistos como uma banda de intervenção, mas a intervenção não pode mais ser a do tempo de José Afonso e seus outros. José Afonso tinha uma utopia, achava que conquistada a liberdade democrática os homens saberiam para sempre o tesouro que ela valia e nunca a colocariam em perigo. Os Mão Morta não confiam em ninguém e já não acreditam numa mudança do mundo a partir da música. Não acreditam que as canções possam mudar tudo e instituir a decência entre os homens. A diferença passa por aqui. Os Mão Morta não têm utopias. Eles seguem o protesto para policiar como cidadãos. Para participar como cidadãos. Para dizerem que, ao menos, alguém guarda a consciência e exige que os níveis de abuso não se agravem. É um exercício de consciência, já não uma motivação algo hippie que procurava alcançar o paraíso na Terra.

Quando o Rodrigo Areias realiza o vídeo de que hoje se fala, e às imagens de Adolfo disparando sobre os funcionários do sistema apõe imagens dos políticos que preponderaram nas últimas décadas, está a fazer ver o que já poderíamos imaginar. É como retirar uma revista pornográfica do saco de plástico em que a fecham. Vemos aquilo que já estávamos seguros de ser o seu conteúdo. Não difere muito nem deve chocar. O inusitado está no facto de que, com a política, o saco de plástico raramente ser retirado.

Se deus existir, devemos dar graças a deus pelo punk, pelo hard core e pelos Mão Morta. Porque isto nunca se faria com os demais músicos. É preciso que se passe por Lautréamont, Heiner Muller ou Richard Brautigan para que se saiba em que arte se vive e que mundo está a arte a tentar entender. Sobretudo, para que se possa usar a arte para o de sempre e para se ser mais gente.

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