Mais iguais do que os outros

Qual é coisa, qual é ela que quanto mais aparece mais ausente está? A abstenção. A abstenção eleitoral é uma fraca adivinha, uma anedota repisada. Mas anedotas sem graça é o que mais se ouve todos os dias nas políticas portuguesa e europeia.

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Portugal é já o terceiro país da Europa com maior percentagem de raparigas obesas, problema que afecta mais de 27 por cento das jovens portuguesas, segundo o último estudo (saído esta semana) da revista Lancet. Prova disso é a senhora Abstenção Eleitoral, que chega aos 40 anos com mais de 66 por cento de massa adiposa, entupindo com o colesterol da dúvida as veias e artérias da direcção do PS e engordurando a face democrática da União Europeia. Chegou a hora de perceber: onde é que ela se tem vindo a alimentar? O que é que esta gorda comeu nos últimos anos?

Fez algumas dietas estranhas, radicais e muito prolongadas. Por exemplo, engoliu dezenas de comentadores políticos que são, ao mesmo tempo, políticos no activo e com agenda partidária pessoal. Estes deixam as sobras televisivas aos comentadores políticos de ocasião (vulgo “opinião pública” ou mesmo “povo”) que esperam ganhar uns segundos de antena para gritarem, como aconteceu na quinta-feira passada na SIC Notícias:

— Eles vêm agora outra vez só para apanharem a colheita! E depois de gastar tudo, vamos embora que os outros têm de semear outra vez! E temos de distribuir tudo pelos nossos amigos e isso...

A Abstenção engordou ao volante, como este clássico taxista que descia a Almirante Reis de Lisboa:

— Mas como é que o Seguro tem o descaramento de cantar vitória!? Vitória como, se nem um terço teve do terço que foi votar?! O que as pessoas lhe quiseram dizer foi: “Vão-se embora! Vão tratar das vossas vidas e deixem-nos em paz.”

A senhora Abstenção gosta de engordar em praias, esplanadas, centros comerciais. Quando é estrangeira, é igual à portuguesa. Como a jovem inglesa no concerto de Robbie Williams (Rock in Rio — Lisboa, dia das eleições) que explicou à reportagem da RTP por que não votara no seu país.

— Não acredito em nenhum, são todos uns corruptos, só estão lá para se encherem! Por isso não vou votar!

O que mostra que o excesso de açúcar, ou álcool, conduz a novos patamares de cidadania: o oxímoro mental, um pensamento que se anula a si próprio. Eles são todos corruptos, portanto vou deixar que se mantenham no poder. Bem vistas as coisas, não deixa de ser uma raciocínio admirável. Melhor do que esse só o de outro estrangeiro no mesmo recinto de festas:

— Votar, eu?! Isto [o concerto] é muito mais importante!

Afirmação que rivaliza com o enfardamento, semana sim semana não, de Durão Barroso, o homem que ao abrir a boca alimenta mais abstencionistas do que Lisboa tem pombos. Um dia vem a Lisboa elogiar o programa de austeridade de Passos Coelho e da troika, porque estará a ter bons resultados no crescimento económico, e esse é o caminho a seguir. Dias depois, o presidente da Comissão olha a pizza pisada no chão que é hoje a sua União Europeia (homem, não te abstenhas mais, sai que ninguém te pode já ver) e, mesmo assim, diz que a pizza se pode engolir. Basta–lhe defender o contrário: o crescimento brutal da extrema-direita racista e da abstenção são culpa de a Europa não ter investido no crescimento económico e no “combate ao desemprego”.

A senhora Abstenção adora estes pratos. Petisca-os como quem não quer a coisa, como aquelas pessoas que vão ao frigorífico comer só qualquer coisinha e duas horas depois engoliram um queijo e um pão de quilo. Como ver cinco deputados xenófobos e racistas a montar no Parlamento Europeu um novo grupo parlamentar, sorrindo do alto de votações que lhes dão 38 deputados para “destruir por dentro o monstro de Bruxelas”. Marine Le Pen (25%, vitória da extrema-direita em França) a apresentar “provas” de democracia: a de que uma “Europa de soberania, respeitosa e fraternal pode existir, deve existir, e que o modelo de uma UE tecnocrática e totalitária está ultrapassada”. Fraternal… Alô, dra. Durão Merkel, estais aí?

A propósito, para criar um grupo próprio, os nacionalistas franceses, holandeses, austríacos, belgas e italianos precisam de mais dois deputados de outras nações. Mas Marinho Pinto não é, com certeza, um “deles”, só na moral do casamento entre pessoas do mesmo sexo, esse atentado à verdadeira Natureza marinho-píntica da Humanidade.

A senhora Abstenção também se alimenta do que não come. E engorda com o que rejeita. Por exemplo, acha que não está obesa e que poderá fugir quando a História regressar (hábito aborrecido da História). O autor inglês George Orwell, mestre do antitotalitarismo fascista e comunista, criou a frase “todos os homens são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”.

A 30 de Maio de 1940, escreveu no diário:

Continua a não haver provas de qualquer interesse pela guerra (...) Não vão aperceber-se de nada até as bombas lhes caírem na cabeça.

Um mês depois, continuava sem perceber a apatia dos conterrâneos:

As multidões dominicais do costume a passear de um lado para o outro, carrinhos de bebé, clubes de ciclismo, pessoas a passear os cães, grupos de rapazes, sem que haja um indício, quer nos seus rostos, quer em alguma coisa que se consiga ouvir, de que esta gente percebe que se arrisca a ser invadida dentro de poucas semanas, embora todos os jornais de domingo digam isso mesmo. A reacção aos apelos renovados para a evacuação de crianças de Londres tem sido muito fraca. É evidente que o raciocínio é: “Não houve ataques aéreos da última vez, por isso desta vez também não vai haver.” E contudo esta gente vai portar-se com a bravura necessária quando chegar a altura, se lhe disserem o que têm de fazer.

Nas últimas europeias, muitos ingleses abstiveram-se, outros votaram maioritariamente (30%) no partido eurocéptico e antiemigração de Nigel Farage. Mas, quando chegar a altura, a senhora Abstenção vai portar-se com a bravura necessária: ou fica em casa ou vai a concertos, e que se lixe.

(Diários, George Orwell, trad. Daniela Carvalhal Garcia. Ed. Dom Quixote, 2014)     

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