Mais do que falar de democracia, há que exercê-la

Debates com deputados ou um (agora anunciado) Parlamento totalmente digital ajudam, mas a democracia exige mais.

Num Abril já distante, derrubada por militares a ditadura que governava Portugal, entendeu a Junta de Salvação Nacional incluir no seu programa, nos objectivos a curto prazo, restaurar “a liberdade de reunião e de associação” (até aí condicionadas ou proibidas) e comprometer o governo provisório, que não tardaria, em promover “a liberdade de expressão e pensamento, sob qualquer forma”. Isto, dito à distância de 43 anos, pode parecer para muitos uma quase bizarra relíquia. Mas foi uma aragem de liberdade que atirou por terra muitos anos de submissão. A política, que ao povo era interdita a não ser para louvar o regime, passou a ser discutida nas ruas com fervor, e a participação popular nas eleições livres de 1975 confirmou esse comprometimento: largos milhares de vozes, até então caladas, queriam ter opinião, exibi-la, esgrimi-la, torná-la útil.

Não durou muito essa febre, porque a normalização do regime democrático (afastadas tentações golpistas de vários matizes) se impôs e, com ela, o voto regular e pacificado, com a remissão dos militares para os quartéis e da política para os políticos. Perderam-se, nesta transição (certamente inevitável), vários laços: de pertença, de confiança, até de empenho. Se o país passava bem sem a instabilidade revolucionária que chegou a lembrar os piores tempos da primeira república, o vazio que se foi criando entre votantes e votados (escolhidos estes para governar) ajudou, com o andar dos anos, a ampliar um fosso indesejável entre ambos. É curioso que, neste aniversário do 25 de Abril, se tenha incluído nas comemorações em Lisboa uma iniciativa que simula a anulação (ainda que episódica) desse fosso: uma espécie de frente-a-frente entre eleitores e deputados, com estes a terem de ouvir, e enfrentar, questões incómodas (no Festival Política estiveram, prontos a ouvir eleitores, deputados do PSD, CDS, PCP, PEV, BE, PAN — só o PS acabou por faltar, incompreensivelmente). Não é, isolado, remédio para nada. Mas serve de alerta. Como serviu de alerta o debate sobre a abstenção, esse flagelo que se torna crescente quando os laços entre eleitores e eleitos diminuem.

Fala-se agora — e é bom que se fale e decida algo nesta matéria — em tornar o Parlamento totalmente digital até ao fim do ano, permitindo entregar e subscrever via internet petições, iniciativas legislativas de cidadãos e iniciativas populares de referendo, acompanhar processos legislativos, seguir de perto os votos e opiniões dos deputados. É um começo. Mas a democracia exige mais. Para que não seja apenas um nome que conforta uns enquanto serve de pretexto a outros para a desrespeitarem.

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