José Sócrates e o professor Domingos Farinho

Farinho que tome a palavra e diga alguma coisa de substancial acerca do que fez, como fez e porque fez. Ou então a Universidade de Lisboa que fale por ele. Ambos continuarem calados já me parece totalmente inaceitável. E sintomático.

O silêncio – estão a ouvi-lo? É cada vez mais ensurdecedor. Eu tenho evitado escrever sobre José Sócrates e seus derivados, por recomendação médica e conselho de amigos. Mas chega uma altura em que já não dá para aguentar. Na América fala-se no mundo da pós-verdade; em Portugal devia falar-se no mundo das pós-notícias: os jornais fazem manchetes, publicam novas histórias, e é como se nada fosse. Por amor de Deus, não pode nada ser. As notícias têm de ter consequências.

Este fim-de semana, o Correio da Manhã publicou as transcrições das escutas que indiciam que Domingos Farinho é o verdadeiro – ou, pelo menos, o principal – autor do livro de José Sócrates A Confiança no Mundo. A acusação não é nova, mas a publicação daquelas transcrições é desconcertante. Há passagens muito divertidas – nomeadamente Farinho a ensinar Sócrates, esse grande intelectual de Sciences Po, a fazer copy/paste e a contar caracteres –, e há passagens muito preocupantes – todas aquelas que indiciam que Farinho foi efectivamente seu assessor para assuntos académicos a partir de 2012, escrevendo-lhe ensaios como outros assessores lhe escreviam discursos. Depois de tudo bem enfarinhado, Sócrates juntava uma ou outra opinião (Vital Moreira já confessou ter feito tal serviço), três ou quatro frases saídas da sua cabeça, levava ao forno e saía uma tese de mestrado.

A notícia de Domingos Farinho ser o escritor-fantasma de José Sócrates foi dada pelo Sol em Outubro do ano passado, e nessa altura ele prestou declarações ao jornal, garantindo ter ajudado o ex-primeiro-ministro apenas na “revisão do livro e notas de rodapé”. Em Fevereiro deste ano, contudo, Farinho já admitiu ter recebido uma avença por esse trabalho através de Rui Mão de Ferro, administrador de uma sociedade de Carlos Santos Silva. Fala-se em pelo menos 40 mil euros – seria a revisão mais cara da História. Convém ainda notar que o nome de Farinho não consta em nenhum lugar de A Confiança no Mundo. O livro não tem um único agradecimento, coisa nunca vista num ensaio nascido a partir de uma tese académica.

Mas o que mais me espanta é que este caso já tem um ano e quase ninguém fez esta simples pergunta: Domingos Farinho pode continuar a levar a sua vida pacata de professor universitário como se nada se estivesse a passar? Segundo a página do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Farinho faz parte do seu corpo docente. Estamos a falar de uma universidade do Estado e de um funcionário público. Que Farinho não queira dar uma entrevista sobre o tema, eu percebo. Mas a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa não tem nada a dizer sobre este assunto? O nome de Domingos Farinho está exposto nos jornais, suspeito de ter colaborado numa fraude intelectual, e continua alegremente a dar aulas de Direito àqueles que vão ser os nossos futuros advogados e os nossos futuros juízes, sem que haja uma justificação pública da sua parte ou uma tomada de posição da universidade onde lecciona?

Por favor, não me venham com o argumento da presunção da inocência. Domingos Farinho não é arguido, e ser escritor-fantasma não é crime. Mas ele é professor de Direito numa universidade pública. Farinho que tome a palavra e diga alguma coisa de substancial acerca do que fez, como fez e porque fez. Ou então a Universidade de Lisboa que fale por ele. Ambos continuarem calados já me parece totalmente inaceitável. E sintomático.

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