Isto está longe de estar esclarecido

O que sabemos agora sobre Paulo Núncio, lamentavelmente, encaixa nesta má escolha de prioridades políticas, que vai para lá da evasão fiscal e representa também uma grave falha no combate ao branqueamento de capitais.

Não, Assunção. Não é possível dizer que “o país deve muito ao doutor Paulo Núncio pelo trabalho de combate à fraude e à evasão fiscal”, como fez ontem a líder do CDS ao referir-se ao ex-Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que deixou escapar (ou, na prática, impediu) a publicação das estatísticas oficiais sobre transferências de dinheiro para paraísos fiscais.

Vamos por partes. Há um sentido mais literal do que Assunção Cristas desejaria segundo o qual os portugueses de facto devem muito, não a Paulo Núncio, mas simplesmente às finanças. Mais portugueses têm dívidas, penhoras e contas bloqueadas a partir do seu tempo no governo. As autoridades fiscais foram implacáveis na relação com os cidadãos, conforme foi decisão desse governo, que não recuou sequer nas mais duras execuções. No geral, os portugueses aceitaram estoicamente estas medidas. Mas havia outra face da moeda — a da evasão e do planeamento fiscal agressivo em larga escala — na qual esperavam igual dureza por parte do governo da direita.

O governo Passos/Portas decidiu não ter essa dureza equivalente por uma escolha inteiramente política. Antes de passarmos aos paraísos fiscais, lembremos que durante aqueles anos quase todas as maiores empresas portuguesas passaram o seu domicílio fiscal para os Países Baixos por razões de otimização fiscal. O governo PSD/CDS nem sequer deu prioridade à denúncia destes casos no Conselho Europeu. E sim, uma parte destes impostos são os que fazem falta às nossas escolas e hospitais. E o governo de então não tentou sequer quantificá-los. Os últimos dados que temos são para 2010 e dão conta de que Portugal perdia cerca de 12 mil milhões por ano em impostos não cobrados através destes movimentos de capitais.

O que sabemos agora sobre Paulo Núncio, lamentavelmente, encaixa nesta má escolha de prioridades políticas, que vai para lá da evasão fiscal e representa também uma grave falha no combate ao branqueamento de capitais resultantes de atividades ilícitas. Grave, e ilegal — porque houve violação de direito nacional e europeu. O artigo 33 da IIIª Diretiva da UE contra a lavagem de dinheiro é claro: os estados-membros devem recolher anualmente os dados estatísticos de transferências para paraísos fiscais e “devem assegurar a publicação de uma revisão consolidada dos relatórios das referidas estatísticas”. Isto é de 2005, e passou a lei portuguesa em 2008. Se a Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária recebia e tratava esses dados, por que não foram publicados, como mandava a lei, os relatórios anuais?

É difícil de acreditar que Núncio não soubesse desta responsabilidade. Afirmo-o com segurança porque, nesses anos, este era no seu pelouro o tema principal de discussão com as organizações europeias e internacionais, por causa da revisão da diretiva que foi discutida quando Núncio era responsável político (entre 2012 e 2014 — a IVª diretiva entrou em vigor em 2015) e pelo incremento de atividades do Grupo de Ação Financeira Internacional (FATF na sigla inglesa, do G8 e da OCDE), que é o principal órgão internacional de luta contra o branqueamento de capitais, e com o qual Portugal realizava “avaliações mútuas” que pararam desde 2011 (sem que eu consiga entender porquê).

No mínimo, o que isto revela do governo PSD/CDS (e não só de Paulo Núncio) é que houve uma total negligência num assunto central à época para todas as organizações europeias e internacionais dedicadas ao combate à evasão fiscal e ao branqueamento de capitais. Quais as origens dessa negligência e quais as suas consequências legais é o que falta saber agora — e não pode deixar de ser investigado.

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