Hossana, ó Núncio!

O país não só te deve muito como ainda espera muito de ti.

Confesso que não tive a possibilidade de assistir a toda a tua prestação no Parlamento, mas, do pouco que vi, só tenho um adjectivo para classificá-la: gostei!

Gostei pela clareza das palavras e pela humildade com que falaste, olhos nos olhos com os teus interlocutores e com uma franqueza de estarrecer: vê-se que não tens nada a esconder e que tens o sentido do serviço público interiorizado de uma forma quase mística. Infelizmente, a canalha não é capaz de perceber os dramas interiores de um Homem da tua dimensão, a sós com a sua consciência e as infinitas responsabilidades do poder. Não havia uma lei, não havia um decreto-lei, nem sequer uma mísera portaria que te desse uma orientação, uma pequena luz no meio das trevas e era tão-somente isso que tu pedias. Nesse deserto existencial, nada mais encontravas do que um mísero despacho de um teu antecessor.

Viveste uma situação que não desejo ao pior dos inimigos. Foram anos e anos que viveste mergulhado numa dúvida dilacerante: devias ou não publicitar os valores das transferências para os offshores? Quantas e quantas vezes, ao longo desses anos, a meio da noite, não te terás levantado angustiado, incapaz de conciliar o sono com essa dúvida tremenda? Quantas vezes não terás consultado a nossa Constituição ou mesmo, em momentos de mais radical dúvida e de maior desespero, os Livros Sagrados?

Os argumentos a favor da publicação dos valores dessas transferências eram poucos: havia o despacho socialista do teu antecessor, umas discutíveis orientações europeias e, ainda, um desagradável dirigente da Autoridade Tributária que insistia em fazer informações sobre o assunto. Poderias ter desprezado completamente tudo isso e optado, expressamente, pela não-publicação, mas não o fizeste e decidiste-te por perseverar nessa dilacerante dúvida.

E, no entanto, a favor da não-publicação avultavam, como tão cristalinamente explicaste, ponderosos argumentos: poderias estar a alertar eventuais criminosos sobre o nosso sistema de controlo de movimentos de capitais e a lançar a confusão nas mentes dos sempre pouco esclarecidos portugueses, já que tais dados só referiam valores brutos. Razões mais do que suficientes — e ninguém te poderia censurar — para teres lavrado um despacho no sentido exactamente contrário ao do teu antecessor. Mas não o fizeste: persististe na dúvida!

E estavas, como é evidente, numa situação em que não podias recorrer a ninguém para te esclarecer nessa dúvida, não tinhas à mão um conselheiro espiritual ou um especialista fiscal em quem pudesses confiar ou, ainda, por exemplo, uma simples ministra que, com a sua opinião, certamente sábia e ponderada, te pudesse, como uma flecha, indicar o caminho certo.

A turbamulta, claro, não te compreende e critica-te. Desprezam o árduo e espinhoso caminho da dúvida que trilhaste por imperativo de consciência. Como desprezaram e criticaram um ex-Presidente quando declarou que “raramente tinha dúvidas”. Infelizmente, é assim mesmo: hoje censuram uma coisa, amanhã censuram exactamente o contrário. Mas que interessa? Move-te somente o superior interesse público e, por isso mesmo, serás sempre uma vítima dos populistas.

O teu despacho sobre o pedido da Autoridade Tributária que pretendia a tua autorização para a divulgação das transferências para os offshores foi, assim, uma pérola que ficará nos anais do nosso direito administrativo e fiscal: Visto.  

Genial! Sublime! Parabéns! Nunca um governante terá dito tanto e tão bem com cinco letrinhas apenas. Mas há mais: plantada no jornal PÚBLICO esta miserável polémica, demitiste-te, quase de imediato, de todos os cargos políticos que tinhas no teu partido, prescindindo, seguramente, da elevada remuneração mensal, do automóvel preto com condutor, do cartão de crédito e de outras mordomias associadas a tão elevados cargos. Isto, para além das gratificantes reuniões que vais perder no Largo do Caldas.

Alguém, dessa turbamulta que te persegue, foi capaz de sublinhar este nobre gesto? Ninguém! Só a excelsa Maria de Assunção conseguiu vislumbrar a tua “grande elevação de carácter” e o muito que o país te deve. E, acrescento eu, não só te deve muito como ainda espera muito de ti.

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